No dia 24 de julho de 1908, uma derrota provou que as vitórias não são a única maneira de entrar para a história do esporte. Após liderar os últimos quilômetros da maratona dos Jogos Olímpicos de Londres daquele ano, o italiano Dorando Pietri chegou ao estádio White City, onde 100 mil pessoas aguardavam os corredores para assistir o final da prova. Muito próximo da glória, o atleta, extenuado, cai. Socorrido pelos juízes da prova, se levanta. O cansaço o derruba mais quatro vezes. Praticamente conduzido pelos braços – e compaixão – dos fiscais da corrida, termina a prova para, em seguida, ser desclassificado por conta da ajuda externa.
“Não seria exagero dizer que o final da maratona dos Jogos Olímpicos de Londres foi o mais emocionante episódio atlético desde a maratona da Grécia Antiga, em que o vitorioso caía na chegada e, em meio a uma ode triunfal, morria”, escreveu o New York Times no dia seguinte.
A comovente cena de Pietri o transformou em um dos perdedores de maior sucesso da história. Foi premiado com uma taça na cerimônia de encerramento dos jogos, entregue pelas mãos de Alexandra, então Rainha da Inglaterra (avó de Elizabeth II).
Inspirado em Pericle Pagnani, o mais forte maratonista italiano, Dorando Pietri começou sua carreira como atleta aos 19 anos. Em 1905, ele venceu os 30 Quilômetros de Paris e, no ano seguinte, participou dos Jogos Olímpicos Intermediários de Atenas. Com sucessivas vitórias, o italiano chegou a Londres como um dos protagonistas dos jogos de 1908.
Sob um calor de 35 graus, às 14h33 minutos daquela tarde de julho, os 55 atletas inscritos na maratona partiram na saída de prova de dentro do castelo de Windsor. O fato ocorreu por um pedido da Rainha Alexandra, que pretendia que seus filhos pudessem assistir à saída da prova. A alteração mudou o percurso total da prova de 42.835 metros para 42.195 metros (atual distância oficial), acrescentando 360 metros na competição. O tamanho da pista de atletismo, justamente onde Pietri não suportou o cansaço, é de aproximadamente 400 metros.
Após a saída, a cada milha percorrida o líder daquela prova era anunciado. Depois dos ingleses Thomas Jack, Jack Price, na segunda parte da corrida, o sul-africano Charles Hefferon assumiu a liderança da prova, que seria mantida até o quilômetro 38. Neste momento, um rojão avisou no estádio que os atletas estavam chegando.
Muito cansado, Hefferon acabou ultrapassado por Dorando Pietri. A multidão no estádio, a espera de ver grande líder da prova, testemunhar o atleta perfeito, uma espécie de Adonis, deve ter ficado surpresa com o corredor italiano de 1,59m de altura, sustentado por uma dieta a base de doses regulares de estricnina – hoje usada como raticida – clara de ovo e conhaque.
Como se estivesse também surpreso diante da ovação do público, Pietri, por sua vez, ficou paralisado ao chegar ao estádio. Cambaleante, partiu para a derradeira volta na pista de atletismo.
“Assim que entrei no estádio, a dor nas minhas pernas e em meus pulmões tornou-se insuportável. Senti como se uma mão gigante estivesse apertando minha garganta, cada vez mais. Se não estivesse tão mal, não teria caído na primeira vez. Levantei-me automaticamente e lancei-me alguns passos adiante. Não mais sabia se estava indo para frente ou para trás. Eles me contaram que caí outras 5 ou 6 vezes e que parecia alguém sofrendo de paralisia indo aos tropeções em busca de sua cadeira de rodas. A partir de então, não me lembro de mais nada, minha memória desapareceu com a última queda”, escreveu Pietri na revista italiana Sport Illustrato, sete anos depois daquela corrida.
Após a primeira queda, o diretor da prova, Jack Andrew, e o chefe do corpo médico, Michael Bulger, correram para ajudá-lo. A cada vez que o italiano caía, Bulger o massageava, para garantir que seu coração continuasse batendo. A cada vez que o italiano levantava, braços eram posicionados em suas costas, sem tocá-lo, apenas para garantir que o atleta não batesse a cabeça quando caísse novamente.
Ao ultrapassar a linha de chegada, Pietri caiu para trás, justamente nas mãos dos ajudantes. Neste momento, um segundo atleta, com a bandeira dos EUA estampada no peito, chegou ao estádio. É importante lembrar que um clima ruim havia sido criado entre o público e a delegação dos Estados Unidos.
Na cerimônia de abertura, os norte-americanos ficaram incomodados quando perceberam que a bandeira de seu país não estava fixada no estádio olímpico. Embora decidissem permanecer e participar da cerimônia, bolaram uma revanche: quando o porta-bandeira, Ralph Rose, parou diante do rei, recusou-se a cumprir o protocolo que determinava baixar respeitosamente a bandeira, mantendo-a o mais alto possível.
Com todos estes atritos, a vontade expressa do público era pela vitória de Dorando Petri. Sem maiores problemas, o norte-americano, Johnny Hayes, completou a volta na pista e os dirigentes da delegação dos Estados Unidos entraram imediatamente com recurso contra Pietri.
No entanto, a Associação de Imprensa relatou que o próprio Hayes recebeu assistência quando chegou ao estádio.
Terceiro colocado, Hefferon apresentou uma apelação contra ambos, Pietri e Hayes, embora tenha prometida retirá-la se os norte-americanos fizessem o mesmo. Por fim, Pietri foi desclassificado, uma medida considerada pelo Sport Illustrato como “draconiana e impiedosa”.
Depois da derrota, mesmo sem falar uma só palavra em inglês, Pietri foi levado a um ‘tour’ pelos ‘music halls’ de Londres. Leitores do Daily Mail arrecadaram 300 libras esterlinas como doação ao atleta. Quando finalmente deixou a capital inglesa, duas semanas após a maratona, uma multidão dele se despediu na estação de Charing Cross e outra o aguardava em Turim para as boas-vindas.
O italiano tornou-se uma celebridade internacional, recebendo ofertas para participar das principais maratonas. No mesmo ano, partiu para uma turnê nos Estados Unidos e em 25 de novembro de 1908 disputa no Madison Square Garden de Nova York a revanche com Hayes. Foi uma prova extremamente peculiar: correr 262 voltas numa pista ‘indoor’ em atmosfera pesada de poeira e fumaça de cigarro.
Extremamente popular, Pietri atraiu 20 mil espectadores que lotaram o estádio, além de outros 10 mil que se aglomeraram do lado de fora. “A mais espetacular corrida a pé que a cidade jamais testemunhara”, estampou o New York Times.
O italiano venceu a prova por meia volta e se mostrou mais confiante para uma segunda revanche, em 15 de março de 1909, quando tornaria a bater o campeão olímpico.
Percorreu o mundo correndo a maratona. Correu pela última vez em Gotemburgo, em outubro de 1911. Em 3 anos de profissionalismo, correu 46 vezes. Abriu um hotel com seu irmão em sua cidade natal, Carpi, mudando-se depois para San Remo. Morreu em 7 de fevereiro de 1942, aos 56 anos de um imprevisto infarto.
As quedas de Pietri, seguidas por sucessivas tentativas de se manter em pé rumo à linha de chegada, credenciaram o italiano para escrever seu nome entre os grandes maratonistas da história, ao lado de Spiridion Louis, o grego que venceu a primeira maratona nos Jogos Olímpicos de Atenas de 1896; de Emil Zatopek, que venceu a maratona nos Jogos Olímpicos de Helsinqui em 1952, depois de conquistar o ouro nos 5000 e nos 10000 metros; e de Abebe Bikila, que correu descalço e venceu a maratona de Roma em 1960.
Dorando Pietri foi, indubitavelmente, o maior dos perdedores, transformado em lenda após uma clamorosa derrota diante das primeiras e rudimentares câmeras a manivela. Os jornais da época transformaram-no em herói, fazendo-o ganhar fama e honrarias e um belo pé-de-meia que jamais obteria com uma vitória “banal”.
Em sua Itália, dele não se esqueceram. Nascido na cidade de Corregio, em 1885, viveu sua juventude na província de Carpi onde, há seis anos, no centenário de seu mais célebre momento, uma estátua gigantesca foi construída no centro da cidade, com o nome de Dorando, o Vencedor.
*A série Grandes Momentos Olímpicos foi concebida e escrita no ano de 2015 pelo advogado e jornalista Max Altman, falecido em 2016.