A obra-prima Dr. Fantástico, de Stanley Kubrick, chamada em inglês de Dr. Strangelove, estreou nos cinemas debaixo de verdadeira aclamação tanto da crítica, quanto do público no dia 29 de janeiro de 1964. A popularidade do filme era uma evidência da mudança de atitude diante das armas atômicas e da doutrina da dissuasão nuclear.
O filme começa com um general enlouquecido, Jack D. Ripper, ordenando um ataque nuclear não autorizado à União Soviética. Ele tem certeza de que os comunistas estão envenenando a água potável do mundo inteiro, um boato muito comum nos EUA durante os anos 1950. Um preocupado ajudante de ordens, o capitão Mandrake, estrelado por Peter Sellers, tenta impedir o fato, mas não consegue.
Quando descobre o problema, o presidente dos EUA, Merkin Mufflin, Peter Sellers de novo, careca e engraçado, já não pode fazer muita coisa. Ele reúne o Conselho de Guerra e ouve, estupefato, um resumo da situação, da boca do alarmado general Buck Turgidson: o avião com a bomba atômica está no ar, incomunicável, e vai cumprir a missão a qualquer custo. A cena em que Turgidson explica a situação a Mufflin é simplesmente perfeita. George Scott, que faz o personagem Turgidson, um ator talentoso, consegue ser hilariante sem deixar de se levar a sério.
Peter Sellers, como não poderia deixar de ser, brilha no papel triplo, com diferentes sotaques e caracterizações. Seu melhor momento é o alucinado personagem-título, um antigo oficial nazista promovido a conselheiro do presidente dos EUA.
Óculos escuros, sorriso maníaco, o sujeito usa uma luva negra na mão direta, uma mão que tem vida própria e teima em fazer saudações nazistas, à medida que o longa-metragem chega ao clímax e enfileira uma sequência genial de cenas antológicas.
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Popularidade do filme foi uma evidência da mudança de atitude diante das armas atômicas
Há um clímax atrás de outro. Primeiro o embaixador russo tenta fotografar a Sala de Guerra, mesmo sabendo que o mundo vai acabar em questão de minutos. Temos o oficial caubói T.J. King Kong, vivido por Slim Pikens, que “monta” a bomba como a um cavalo. Em seguida tem as tomadas de bombas explodindo ao som da lírica canção We’ll Meet Again
Também há nesse filme uma antológica cena do presidente norte-americano Merkin Muffley ligando desesperadamente para o seu colega soviético. O líder russo informa a Muffley que um ataque atômico à União Soviética desencadearia automaticamente a terrível “máquina do dia do Juízo Final”, o que faria desaparecer totalmente a vida sobre o planeta. Vemos ainda o conselheiro-chefe para a política externa de Muffley, o Dr. Strangelove, assegurando ao presidente e aos altos funcionários de que nem tudo está perdido: sugere que eles podem sobreviver mesmo com a eclosão da “máquina do dia do Juízo Final” refugiando-se nas profundezas dos túneis das minas.
Uma análise minuciosa do personagem Dr. Fantástico indicava que provavelmente era uma composição de três personalidades reais: Henry Kissinger, um cientista político que havia escrito sobre a estratégia da dissuasão nuclear; Edward Teller, um cientista chave no desenvolvimento da bomba de hidrogênio; Werner von Braun, o cientista alemão, figura de proa na tecnologia de mísseis espaciais.
Uma análise menos profunda, porém, seria necessária para apreender as investidas satíricas de Kubrick sobre a política norte-americana e soviética de armazenamento nuclear e retaliação maciça. As estocadas do filme a algumas das crenças sagradas centrais da “estratégia de defesa da América” tocaram em fibras sensíveis do povo norte-americano. Particularmente após a aterrorizante Crise dos Mísseis de Cuba de 1962, quando a aniquilação nuclear parecia uma possibilidade bastante real.