O texto abaixo foi publicado no jornal O Estado de São Paulo em 29 de setembro de 2002. Opera Mundi republica a resenha, que comenta o livro Literatura e Resistência, em homenagem ao crítico literário e professor emérito da USP Alfredo Bosi, que morreu nesta quarta-feira (07/04), aos 84 anos, vítima da covid-19.
Quando o assunto é literatura, o que significa resistir? Alfredo Bosi, em Literatura e Resistência (Companhia das Letras, 298 págs., R$ 37), utiliza a metáfora da lente bifocal para explicar por que O Uraguai, poema de Basílio da Cama (1740-1795), é uma obra que resiste à ideologia de sua época, ainda que o autor tenha entrado para a história da literatura como um bajulador, salvando-se do desterro graças a um poema celebrando as núpcias da filha do Marquês de Pombal, dona Amália. “Uma lente promove a exaltação da autoridade colonial, por meio do herói, o capitão Gomes Freire, e da tomada de partido em favor das forças portuguesas contra as missões jesuíticas; mas há outra lente, que chega perto da vida dos índios aldeados”, afirmou Bosi, nesta semana, numa conversa no Instituto de Estudos Avançados, na Universidade de São Paulo.
A simpatia de Basílio da Gama (um “vassalo iluminado”) pelos índios é tão viva, na opinião de Bosi, que o autor lhes dá voz, voz que contradiz a ideologia colonial. E cita uma estrofe de O Uraguai para dizer que Sepé e Cacambo, os índios do poema, “esboçam o discurso da razão americana em formação na segunda metade do século 18”; “Gentes de Europa nunca vos trouxera / O mar e o vento a nós. Ah! não debalde / Estendeu entre nós a natureza / Todo esse plano espaço imenso de águas.”
“A boa literatura, em geral, tem uma dimensão contraideológica”, afirma Bosi, que recorre à filosofia durante todo o livro. “Isto é, o bom escritor se debruça sobre o homem singular, sobre situações particulares e complexas; sua maneira de representar em geral diverge da tipificação que é própria da ideologia.” Tal processo pode ser involuntário, e o exemplo mais conhecido, caro à tradição marxista, é o de Balzac, um conservador e legitimista “cuja obra desceu tão a fundo na representação das pessoas do período de ascensão da burguesia francesa, que acabou sendo o quadro mais complexo e idôneo daquela sociedade.”
Resistir, em literatura, acredita Bosi, não é, portanto, optar pelas boas causas. A relação entre literatura e sociedade, para ele, existe, mas não é o fator determinante da grande literatura. Especialmente nos momentos em que o élan revolucionário não polariza, nem comove os criadores.
“A literatura acompanha a história, sim, mas os textos não são apenas reflexos da situação; são também, às vezes, uma profunda reflexão sobre o destino humano”, diz. “Se Dante fosse só um cronista de Florença, não seria compreendido hoje, depois de 700 anos.”
Marcos Santos/Jornal da USP
Bosi, autor de Literatura e Resistência, morreu nesta quarta, aos 84 anos
Bosi trava um diálogo crítico e explicito com e contra a crítica sociológica. Na sua opinião, ao se analisar um texto literário, é preciso levar em conta a dimensão individual da criação, que não se prende, exclusivamente, a seu tempo — em suas palavras: “O tempo do escritor tem profundidade, elasticidade e dimensão dramática que não coincidem com o tempo em que vive”; “a descontinuidade, isto é, a diferenciação dos olhares, das ênfases e dos tons, se é espinho para o sociologismo compactante, não constitui problema para o historiador das produções imaginárias familiarizado com a multiplicidade de processos simbólicos”, escreve em Por um Historicismo Renovado. Reflexo e Reflexão em História Literária, primeiro ensaio do livro.
Neste texto, Bosi faz um breve relato da historiografia literária brasileira, desde as primeiras ordenações, durante o século 19, e defende a adoção de critérios livres de rótulos temporais na discussão da produção poética e narrativa. Para ele, essa tradição foi fundada no país por dois “historiadores” da literatura, os críticos literários Otto Maria Carpeaux, autor de História da Literatura Ocidental, e Antonio Candido, de Formação da Literatura Brasileira. Apesar de Candido ser tido, tradicionalmente, como um integrante da tradição crítica sociológica do país, na visão de Bosi, os dois autores “tomaram a sério o significado dos dois membros da expressão; a historicidade da cultura, isto é, a inserção da obra no tempo e no espaço das ideias e dos valores; e o caráter expressivo e criativo do texto literário na sua individualidade”.
Desta visão decorre uma prática, que é a construção de uma história que não se prende, também, à produção normalmente estudada pela crítica da literatura brasileira. Não por acaso, Bosi, que estuda textos, entre outros, de Padre Vieira, Cruz e Souza, Lima Barreto, Euclides da Cunha, João Antonio e Graciliano Ramos, inclui em Literatura e Resistência ensaios dedicados a Pirandello (Luigi Pirandello: Um, Nenhum e Cem Mil) e a Albert Camus (Camus na Festa do Bom Jesus).
O texto sobre Camus, na verdade, tem um pé na Europa e outro em Iguape, no litoral sul de São Paulo. Discute o conto La Pierre qui Pousse (A Pedra que Brota), do livro O Exílio e o Reino, em que se encontram o engenheiro francês, chamado d’Arrast, e um cozinheiro brasileiro, mulato, não nomeado. Primeiro, os dois se aproximam, através da lógica do brasileiro —d’Arrast diz que na França já não há mais senhores, e o mulato pergunta se lá ninguém trabalha. O engenheiro é obrigado a reconhecer que cá e lá há ricos e pobres, mas está apenas se iniciando no conhecimento; ainda lhe falta tomar contato com o sincretismo religioso. Mas não só o personagem tem a aprender, também o leitor; a narrativa ficcional, para Bosi, vai além do dado etnológico recolhido pelo escritor – “e o trabalha de tal modo que o leitor vem a conhecer não apenas as faces do objeto visto como a aventura do sujeito que vê. O observador é aqui afetado e envolvido”.