Recentemente, o jornalista Elio Gaspari escreveu em sua coluna nos jornais Folha de S.Paulo e O Globo sobre um tema que é fundamental para a indústria editorial: o preço fixo do livro.
O texto de Gaspari é uma reação à sugestão, feita ao governo federal por um grupo de trabalho, formado por editores e livreiros, de edição de uma Medida Provisória visando a instituir o preço fixo do livro, limitando a 10% os descontos que poderiam ser dados por livrarias, físicas e virtuais, no primeiro ano de edição de uma obra.
O título do artigo de Gaspari é ofensivo para o mercado editorial: “Os livreiros querem tungar os leitores”. Mais que ofensivo, é equivocado. Mas o subtítulo é ainda pior: “Duas grandes redes não pagam o que devem e suas guildas pedem uma canetada para tabelar o preço dos livros”.
Não há “tunga”, não há tabela, no sentido que o leitor mais antigo talvez recorde, da época do Plano Cruzado. O que há é a proposta de adoção de uma prática disseminada na Europa – e adotada também na Argentina – e que, especialmente dos anos 1980 para cá (quase 40 anos!) tem sido fundamental para manter e ampliar a capilarização das livrarias nos países que a utilizam, juntamente com outras políticas públicas.
O artigo de Gaspari, no entanto, tem muitos equívocos, e talvez a melhor forma de respondê-lo seja pegar trecho a trecho. Vamos lá.
Gaspari: “A origem do pleito é uma majestosa demonstração do atraso de empresários e do oportunismo de suas corporações. Ela deriva do que seria uma crise do mercado de livros, exemplificada nas dificuldades financeiras que afogam as duas maiores redes do país, a Cultura e a Saraiva.”
Resposta: a origem da discussão do preço fixo não tem nenhuma relação com a Saraiva ou a Cultura. Ela foi trazida por editores e livreiros independentes no final dos anos 1990. Em 2006, a Liga Brasileira de Editoras (Libre), inclusive, publicou um livro sobre o tema, chamado Proteger o livro – Desafios culturais, econômicos e políticos do preço fixo. Essa discussão, na verdade, nasce de uma série de disfunções do mercado editorial, como o crescimento das consignações, a financeirização, o dumping em troca de cadastros nas lojas virtuais, a administração que se dizia “profissional” e a venda de espaços nas livrarias, como Fnac, Cultura e Saraiva, práticas que criaram dificuldades para as editoras e livrarias independentes.
A atual proposta do preço fixo surgiu a partir de um projeto de lei elaborado pela senadora Fátima Bezerra (PT-RN), agora eleita governadora, que não avançou no Congresso dado o conservadorismo econômico da casa. O projeto foi sugerido à senadora pela Associação Nacional de Livrarias (ANL), que representa mais as pequenas e médias empresas do setor que as grandes Saraiva e Cultura, atualmente em crise. O projeto foi apoiado pela Libre, pela Associação Brasileira de Editoras Universitárias (Abeu), pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) e pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) após muita negociação, negociação que não envolveu nunca Saraiva e Cultura, que eram contra o projeto até muito recentemente.
Gaspari: “Quando as grandes redes de livrarias estavam comendo as pequenas, louvava-se a destruição criadora do capitalismo. Havia até editoras que imprimiam seus livros na China.”
Resposta: Não sei quem louvava isso, talvez Gaspari fosse um deles. Eu, e muitos editores independentes que defendem o preço fixo, estava entre os que criticavam as duas coisas. A lei do preço fixo favorece, essencialmente, a pequena livraria. Esse parágrafo faz parecer o oposto.
Gaspari: “O mercado de livros, como o de jornais, passa pelo choque da era digital. Primeiro surgiu a Amazon, revolucionando o setor com seu sistema de vendas. Depois veio o e-book, que compete com os volumes impressos. Assim é a vida, o automóvel quebrou as fábricas de carruagens, o CD matou o disco de vinil e a internet matou o CD”
Resposta: o livro digital representa pouco mais de 1% do faturamento das editoras brasileiras (segundo o censo do livro digital de 2017); 2,38% se excluirmos livros técnicos, didáticos e religiosos. A comparação entre os dois mercados, o da música e o do livro, portanto, não se sustenta. Os primeiros aparelhos de livro digital são anteriores ao formato MP3, mas até agora a grande maioria dos livros é vendida em papel mesmo, inclusive nos EUA. O sistema de vendas da Amazon pode ser “revolucionário”, mas não precisa nem deve ser o único. Lutar contra os monopólios e oligopólios é uma necessidade de qualquer país que se leve a sério. O laissez-faire dá em crises como a de 1929 e 2008, sabemos, esta última cobrando seu preço até hoje, inclusive desestabilizando governantes democraticamente eleitos pelo mundo afora.
Gaspari: “Como em Pindorama canta o sabiá, no século 19, quando os Estados Unidos e a Europa expandiam suas ferrovias, os plutocratas lutavam para preservar a escravidão”.
Resposta: A comparação com a escravidão é uma acinte contra a história do livro no Brasil e contra a história dos escravizados.
Gaspari: “Amazon está encostando no trilhão de dólares em valor de mercado. Esse gigante surgiu dando descontos. As guildas dos livreiros nacionais querem socializar um falso problema suprimindo-os.”
Resposta: Gaspari ignora, aqui, a realidade, e faz um conto da Carochinha que pega bem com os leitores. Vou dar um exemplo de fora do mercado editorial que talvez explique melhor o que é a vida real: em abril de 2004, dez meses antes do lançamento do YouTube, no Rio de Janeiro, os jovens Ariel Alexandre e Edson Mackeenzy fundaram um site que teve até uma vida relativamente longa, a Videolog.Tv. Tinha todas as funções que a plataforma YouTube criaria em 2004. Eu era usuário e até preferia a navegabilidade deles. Mas faltavam no Brasil capitais, ambiente tecnológico e políticas públicas que permitissem o desenvolvimento contínuo da plataforma. Depois de um certo tempo, a Videolog.Tv se associou ao UOL. A tecnologia foi incorporado pelo portal, que até hoje mantém o UOL Mais – uma boa plataforma de vídeos, mas muito inferior hoje ao YouTube. Fazer uma empresa como a Amazon não é tarefa apenas de visionários: depende de uma série de fatores muito mais relevantes que a genialidade tecnológica ou comercial.
Longe de significar tunga no consumidor, advogo que, ao contrário, o preço fixo tende a reduzir o preço médio dos livros, uma vez que vai levar a uma diminuição dos investimentos improdutivos do setor em marketing (venda de espaços em livrarias, por exemplo) e favorecer a circulação do grosso dos títulos publicados no país.
O mercado livreiro conta com, aproximadamente, 50 mil novos títulos ou reimpressões por ano (dados de 2018, sobre o mercado em 2017): os descontos aceleram a circulação dos best-sellers, mas deixam no mínimo 49.500 outros livros, sem contar o catálogo não reimpresso no período, girando mais devagar, o que significa que o preço da imensa maioria dos livros sobe.
O livro é talvez hoje o único produto de consumo que você compra e pode ficar para seu filho. Há muitas outras características desse mercado que não permitem a comparação deste produto com nenhum outro. Como mercadoria especial, o livro precisa ter uma lógica de circulação e políticas públicas especiais, que favoreçam a expansão das áreas em que ele está acessível ao leitor.
Esse deveria ser um direito do cidadão, e os planejadores e economistas do Estado têm a obrigação de pensar nessa questão com profundidade, sem os lugares-comuns que, infelizmente, nortearam o texto de Gaspari.
(*) Publicado em Publish News
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