Reservado e teimoso, aberto e popular, sobretudo profundamente ético. É assim que recordo pessoalmente Ernico Berlinguer, que conheci na minha infância, quando meu pai desempenhava as funções de Secretário Provincial do Partido Comunista Italiano em Livorno. Livorno é uma cidade portuária da Toscana, muito importante no xadrez político nacional pois é aqui que um grupo de foragidos do XVII Congresso socialista de 1921 saiu do partido, entoando a Internacional, e fundando o Partito Comunista d’Italia (depois Partito Comunista Italiano). Saídos do Teatro Goldoni, os representantes da corrente comunista do Partido Socialista se dirigiram para outro teatro da cidade, certamente mais popular, o Teatro San Marco, para ali fundar a nova formação política. Bordiga, Gramsci, Terracini e outros tomaram tal iniciativa, que dividiu o movimento operário italiano para sempre, salvo a experiência de unidade nacional durante a luta de resistência, a aprovação da nova Constituição republicana e os primeiros governos do pós-guerra, até a decisão de De Gasperi e da Democracia Cristã de romper, em Maio de 1947, com a frente social-comunista, em seguida à eleição à Casa Branca de Harry Trumam.
Como Mondaini bem destaca no seu livro, Togliatti – chamado “il migliore” – introduziu, desde “a viragem de Salerno” de 1944, uma fórmula ao mesmo tempo ambígua e funcional ao contexto da política atlantista italiana: a “democracia progressiva”, corroborada pelas “reformas estruturais’ (reforma agrária em primeiro lugar), pelo empenho dos comunistas em levar avante batalhas progressistas no terreno da democracia parlamentar, pela fidelidade absoluta ao regime soviético de Moscovo (o chamado “legame di ferro”).
Foi este legado, juntamente com o período da secretaria de Luigi Longo, sucessor de Togliatti, que também Mondaini descreve eficazmente, que Berlinguer herdou. Um património de ideais mergulhadas na Resistência ao nazifascismo, nas lutas operárias e agrárias dos primeiros anos da República, na pretensão de uma ética privada e pública diferente e superior com relação aos cristão-democráticos, mas também aos “camaradas que erraram” (socialistas e social-democratas)…E um posicionamento internacional desfavorável à pertença à OTAN, na espera da “hora X” para levar a cabo a almejada revolução.
O Berlinguer que Mondaini descreve advoga, desde os primeiros anos da década de 1970, um socialismo fruto de um longo processo de luta dentro das instituições democráticas italianas. E, recorda Mondaini, ainda como vice-secretário de Longo, Berlinguer teve uma postura firme com relação quer ao movimento estudantil que, do maio francês, espalhou-se até a Itália, quer à formação do grupo que fundou o jornal Il Manifesto. Jovens intelectuais brilhantes como Rossanda, Magri e outros foram expulsos do Partido Comunista Italiano, representando uma novidade absoluta no panorama político nacional: um grupo organizado e influente que se colocava à esquerda do PCI e que, em 1975, contribuiu de forma decisiva a formar o partido da Democracia Proletária, firmemente antissoviético.
A cifra político-cultural de Berlinguer era esta: e, como Mondaini destaca, citando um trecho do já secretário geral do PCI de 1975, ele iniciou a avançar instâncias da cultura liberal, similares à doutrina que hoje é conhecida como dos direitos humanos. Pluralismo político e das ideias, convivência de empresas públicas e privadas, laicidade do Estado e liberdade religiosa, artística e cultural. O que lhe distanciou ainda mais dos grupos à esquerda do PCI, aproximando o partido a posicionamentos mais keynesianos, presentes numa certa parte do partido no poder, a Democracia Cristã (DC).
Alameda Editorial
‘A invenção da democracia como valor universal’ é obra de Marco Mondaini, pela Alameda Editorial
Mondaini faz muito bem a sublinhar a importância da “solução chilena” de 1973 para a compreensão da viragem conhecida como “compromisso histórico”, ou seja, a unidade nacional entre os três principais partidos que saíram vitoriosos da resistência, PCI, PSI e DC. Assim escreve Mondaini (p. 44): “Berlinguer captou os sinais provenientes do Chile, vinculando-os a uma precisa análise sobre a conjuntura política que parecia estar em curso na Itália”. Mas não foi só o golpe contra Allende a abanar o mundo comunista daquela época: os “anos de chumbo”, na Itália, já tinham começado, com o atentado de Piazza Fontana, em Milão, a 12 de dezembro de 1969, e com tentativas de golpes de estado de extrema direita em 1964 (“Piano Solo”, liderado pelo General De Lorenzo) e sobretudo em 1974, conhecido como “golpe-Borghese. O Berlinguer que pessoalmente me recordo – mesmo através das conversas que meu pai tinha em casa com minha mãe – era um político, mas sobretudo um cidadão extremamente preocupado com uma situação que podia desaguar no caos institucional e, consequentemente, em soluções ditatoriais. Foi provavelmente por isso que ele apelou para que houvesse uma atenta “vigilância democrática”, que Mondaini recorda em vários trechos do seu livro. Se tratava de defender as conquistas da democracia e da resistência, por isso é que foi necessário alargar a política das alianças até envolver a DC num projeto de defesa da democracia italiana.
Embora criança, lembro-me que em muitos casos os camaradas da base interpretaram o compromisso histórico com fé, mas sem nenhum convencimento político. Provavelmente tem razão Mondaini quando afirma que o compromisso histórico é o filho natural e legítimo da democracia progressiva e da unidade nacional de Togliatti. Porém eu acredito que tal estratégia política sempre ficou na ambiguidade de uma base que formalmente aderiu a este programa de longo prazo, mas sempre esperando pela “hora X”. Quando Berlinguer anunciou o compromisso histórico ficou mais claro mesmo pelas bases mais radicais de que a tática estar-se-ia transformando em estratégia…Mas o pânico não durou muito. As Brigate Rosse, juntamente com pedaços importantes do estado e provavelmente da CIA pensaram bem em eliminar o interlocutor privilegiado de Berlinguer na DC, Aldo Moro, decretando o fim daquela audaciosa tentativa de reconectar as duas tradições principais da resistência italiana, a comunista e a católica, para defender a democracia.
Sem querer entrar nos pormenores do eurocomunismo e de outros momentos marcantes da proposta política de Berlinguer, inclusive das suas ambiguidades bem descritas por Mondaini, quero fazer uma última notação em mérito ao derradeiro período da sua parábola política, de 1980 até o ano da sua morte, 1984. Assim escreve Mondaini (p. 56): “a fórmula do ‘compromisso histórico’ teria sido abandonada por completo das suas intervenções, sendo substituída pela ‘alternativa democrática’ como resposta necessária à resolução da ‘questão moral’”.
Provavelmente foi esta última fase da proposta política de Berlinguer que, hoje, na Itália, ficou como a marca principal deste líder esquivo e brilhante ao mesmo tempo: a sua ética política era irredutível, a sua honestidade fora do tempo, um tempo em que a estrela socialista Bettino Craxi começava a emergir, numa “Milano da bere” que ostentava luxo, lazer e hábitos novos, com um país que acabava de sair dos “anos de chumbo”. E a propósito da ética de Berlinguer quero fechar esta intervenção com mais uma recordação pessoal: estávamos, com a família dele e a minha, esperando pelo barco que, de Livorno, devia levar o secretário do PCI para Portoferraio, na Ilha de Elba, onde ele por vezes costumava passar os seus poucos momentos de férias. Era agosto e a fila enorme, o sol no auge; toda a gente lhe convidou para passar a frente e entrar na embarcação. Berlinguer foi irredutível, nem a intervenção dos seus guarda-costas valeu para o convencer. O líder do Partido Comunista devia estar com o povo e atuar da mesma forma que o povo faz. Ficou (ficamos) na fila durante mais de uma hora, esperando, como todos os outros passageiros, a nossa vez de subir. Provavelmente o maior legado de Berlinguer à ética pública, italiana e internacional foi este, além das ideias, méritos, limitações e contradições propriamente políticas que ele, como todos os que fazem este trabalho, também teve.
Se calhar é justamente este o “valor universal” da democracia berlingueriana que Mondaini abordou nesta sua obra, que vai constituir uma pedra miliar dos estudos sobre o comunismo italiano, não apenas no Brasil, mas a nível internacional.