(*) Este texto foi publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo em 19 de maio de 2001. Lygia Fagundes Telles morreu neste domingo, 3 de abril de 2022, aos 98 anos.
Mais um prêmio para Lygia Fagundes Telles.
A escritora paulistana, aos 78 anos, é a autora do livro do ano do Prêmio Jabuti, na categoria ficção: Invenção e Memória, publicado no início do ano passado pela Rocco. O prêmio será entregue hoje, na 10ª Bienal do Livro do Rio.
Ao saber da escolha, Lygia, integrante da Academia Brasileira de Letras (eleita em 1985), reagiu lembrando um poeta inconfidente, como o fez na entrega do prêmio que recebeu também este ano da Associação Paulista dos Críticos de Artes (APCA), pelo mesmo livro. Para Lygia, como para Tomás Antônio Gonzaga, as glórias que vêm tarde já vêm frias.
Quando seu livro já havia sido escolhido entre os três ganhadores do prêmio na categoria contos e crônicas e era tido como quase certo vencedor da categoria mais importante do Jabuti, Lygia recebeu o Estado em seu apartamento com um verso de Dylan Thommas, do poema E a Morte Perderá o Seu Domínio: “Mesmo que os amantes se percam, continuará o amor.” “O que eu quero dizer é que, na literatura, mesmo que os autores se percam, continuará o livro”, explicou. “Às vezes, um escritor fica triste com a efemeridade das coisas, mas esse verso conforta mesmo que eu venha a me perder, quem sabe um de meus livros permaneça”.
Atualmente, Lygia considera Invenção e Memória seu melhor livro. “Sou como as mães em relação a seus filhos: o caçula é sempre o que recebe mais atenção.”
Mas mistérios acontecem.
Segundo a autora, a recepção de Invenção e Memória foi uma surpresa. Na sua opinião, A Noite Escura e Mais Eu (1995), seu livro anterior, também de contos, tinha mais preocupações estéticas. Já Invenção e Memória foi um livro que pegou as pessoas e também as novas gerações, “por urna questão de amor mesmo”. “E, voltando ao Dylan Thomas, se os jovens me aceitam, eu não vou me perder, quer dizer, eu posso me perder na morte, mas a palavra escrita fica”.
O primeiro livro de Lygia foi publicado em 1938. Trata-se de uma reunião de 12 contos, intitulada Porão e Sobrado. O segundo, Praia Viva, é de 1944. O terceiro, O Cacto Vermelho, é de 1949. Essas três obras, no entanto, não fazem parte da “biografia oficial” de Lygia, que prefere contar a história de sua carreira literária a partir de Ciranda de Pedra (1954), seu primeiro romance e obra com que, segundo o crítico Antonio Candido, atingiu a maturidade literária. Entre os vários livros que publicou desde então, estão os romances As Meninas (1973) e Verão no Aquário (1963) e as reuniões de contos O Jardim Selvagem (1965) e Seminário dos Ratos (1977).
Lygia, como os poetas românticos brasileiros que sempre reverencia (e que, como ele, frequentaram a Faculdade de Direito do Largo São Francisco), parece sentir um prazer quase estético ao falar da morte. Para ela, num país como o Brasil, “as coisas desaparecem muito rapidamente”. E os artistas que se preocupam com questões mais perenes ficam assustados.
Mais uma vez, cita Dylan Thomas: “Mesmo na loucura, permanecerá a lucidez.” Por loucura, Lygia entende a insistência de senadores como Antônio Carlos Magalhães e José Roberto Arruda em não renunciar ao mandato, poupando os brasileiros de uma discussão inócua. Na mesma categoria, ela inclui o arquivamento do pedido de uma Comissão Parlamentar de Inquérito da Corrupção, depois da manobra do governo.
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Telles conta em ‘Invenção e Memória’ histórias em que a lembrança é ingrediente fundador, localizada ou não no tempo
Com 125 páginas, Invenção e Memória traz 15 contos da autora, em que ficção e lembrança mais do que se confundem, se compõem. Uma frase do primeiro conto da obra, Que Se Chama Solidão, talvez explique melhor o conjunto selecionado por Lygia: “Algumas lembranças me parecem fixadas nesse chão movediço.”
No chão movediço da lembrança, ela conta histórias em que o passado é ingrediente fundador, seja ela (a lembrança) localizada no tempo, como A Dança com o Anjo, da época da faculdade, seja ela fundada num tempo indeterminado, como O Menino e o Velho. A escritora paulistana gosta de afirmar que só uma brasileira poderia ter escrito o romance As Meninas, porque só uma autora que viveu durante a ditadura militar poderia descrevê-la da forma que o fez. O que dizer então de um livro que recorre a suas lembranças mais particulares?
“Parto sempre da realidade em direção à ficção ou da ficção em direção à realidade; é um trabalho engajado, só não reconhece quem não vê ou não quer ver”, diz. E As Meninas talvez seja a melhor prova do engajamento intelectual e político de Lygia, romance do qual ela pretende resgatar a personagem Ana Clara num próximo livro. “A Ana, quando morreu, veio várias vezes falar comigo; ela tinha de morrer, mas talvez tenha chegado a hora de ela voltar.”
Durante a entrevista, Lygia afirmou que, por muito tempo, sofreu preconceito por ser mulher. Afinal, como poderia escrever bem daquele jeito? “Os críticos gostavam de mim não porque eu era bonitinha”, conta Lygia. “Eu tentava esconder o sexo usando blusas fechadas, que uso até boje, para que não despertasse outras ideias; eu queria que me reconhecessem como escritora.” Para superar o preconceito, afirma ter “lutado como uma leoa”. “A mulher não é melhor nem pior que o homem; a natureza humana é igual, com todos os defeitos, os vícios, as ambições, as crueldades”, defende. “Ela se desenvolve nas sombras.”
Quando pequena no interior de São Paulo, Lygia gostava de observar com uma lupa pequenos insetos. “Eu acompanhava a joaninha subindo a árvore; de repente, ela parava, esperava e mudava de direção.” Por quê? Lygia olhava para cima, como se a joaninha tivesse seguido o caminho inicialmente traçado e encontrava uma aranha. “A joaninha, suponho, percebeu a presença da aranha com as antenas: uma percepção como a das mulheres, desenvolvida no escuro. Evidentemente, conheço melhor as mulheres; mas não crio apenas personagens femininas”, argumenta. E sugere a leitura de três contos seus: Helga, A Saúna e WM.
Em Helga, um brasileiro tem um romance com uma alemã. O narrador, Paulo Silva, afirma: “A beleza de Helga e sua perna. Confesso que durante muito tempo não sei em qual pensei mais, se na que tinha ou se na que perdera”. E, na lua-de-mel, ele rouba a perna mecânica de Helga. Para vendê-la.