Originalmente publicado no jornal O Estado de S.Paulo em 16.nov.2003.
Há um pequeno livro, do gênero que abusa das fotos e que inicialmente tinha preferência por imagens de animais, que pode estar causando um grande equívoco: trata-se de Antes que elas cresçam (Landmark), uma crônica singela de Affonso Romano de Sant’Anna ilustrada com fotos de pais e avós.
Por trás desse texto açucarado (que as pessoas podem conferir sem comprar os livros, folheando na estante da livraria), há um intelectual combativo, que ousa divergir de nomes como Antonio Candido e Haroldo de Campos com argumentos capazes de incrementar a leitura de várias obras literárias e de provocar respostas também elucidativas.
Este é, talvez, o melhor Affonso Romano de Sant’Anna, o autor de Que fazer de Ezra Pound (Imago, 260 págs.). O título do livro apropria-se do nome do primeiro ensaio, publicado originalmente no Jornal do Brasil e no Jornal da Tarde, em 1987, numa polêmica aberta com os concretistas.
Para o ensaísta, Pound não pode se transformar num “obelisco egípcio em Roma, cheio de hieróglifos reverenciados, exatamente porque ininteligível, tendo o seu valor estético devido unicamente ao seu potencial de enigma.”
Para responder à aparente oposição entre a visão política fascista de Pound e a poesia considerada revolucionária, Romano de Sant’Anna parte para a análise de Os cantos e busca demonstrar que o discurso da obra não é moderno, mas conservador. “Como já assinalou Octavio Paz, destaca-se a visão imperial da sociedade e da história, a construção hierarquizada dos homens, baseada na ideologia do ‘centro’ e da ‘ordem’, com evidente nostalgia das sociedades agrárias. Daí emergem símbolos tutelares como a águia, o imperador e o Deus Sol, com evidente conotação fascista”.
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O segundo texto, “O sequestro de Mário de Andrade por Mallarmé Campos”, volta a ter como alvo os concretistas, em especial a tese de Haroldo de Campos “Morfologia de Macunaíma”. A questão central do texto é que, para Romano de Sant’Anna, Haroldo só consegue ler Mário de Andrade através do espelho, utilizando, inclusive, argumentos anacrônicos, como enxergar em Macunaíma, de 1928, a influência de Serafim Ponte Grande, de Oswald, de 1933.
Outro texto de Romano de Sant’Anna que revela um ensaísta independente é “Curtição: O Cortiço do mestre Candido e o meu”, texto que integrou o livro Por um novo Conceito de Literatura Brasileira, de 1977. O texto é, na verdade, uma tréplica de Romano de Sant’Anna, em Análise estrutural de romances brasileiros (1973), havia feito uma análise de O Cortiço como forma de introduzir o uso do método estruturalista no país. Candido não concorda com a organização dos elementos do romance realizada por Sant’Anna — em especial, com relação à associação do cortiço São Romão à natureza (conjunto 1) e a casa do Miranda (conjunto 2) com a cultura.
Candido respondeu com uma análise intitulada “A passagem do dois ao três: contribuições para o estudo das mediações na análise literária”. Depois da resposta de Sant’Anna, Candido publicou, em 1991, na Novos Estudos, do Cebrap, mais um texto sobre o romance de Aluísio Azevedo, retomando algumas questões e ampliando a análise que fizeram dos nos 1970.
Ainda neste livro, cabe destacar os ensaios sobre a obra de Jorge Amado (um sobre A morte e a morte de Quincas Berro d’Água e outro sobre Dona Flor e seus dois maridos, em que discute o conceito de carnavalização a partir da obra do russo Mikhail Bakthin, e o texto A Paixão segundo G.H.: “O ritual epifânico do texto”.