Fragoso era um dos amigos que sabiam o segredo de entrar na nossa casa, quando não havia ninguém. Normalmente, em vez de tocar a campainha, cruzava o portão e dirigia-se à porta da sala, usada como entrada convencional da casa nada convencional em que morávamos, e batia numa chapinha de metal que cobria uma espécie de olho mágico, mas sem olho, nem nada mágico, cuja função era ver de dentro quem batia lá fora. Se ninguém viesse abrir num pequeno intervalo, Fragoso dava a volta pelo jardim, ia até o terraço e abria a pesada porta de vidro cujo trinco nunca funcionou e que dava acesso ao interior da casa, diretamente pela sala. Entrava, sentava no sofá e esperava a chegada de alguém enquanto lia uma revista ou jornal. Tal qual Fragoso, vários amigos que tinham mais intimidade com Virgínia e Artigas agiam assim. Alguns, mais tímidos, preferiam esperar sentados na rede do terraço, para não “invadir” a casa. Essa história de arquitetura sem portas que fecham de verdade parece ser antiga na obra do Artigas.
Fragoso era um dos poucos da direção do PCB que conversava com as crianças. Tinha uma memória e tanto. Sabia o nome de todas as minhas colegas prediletas da escola primária e perguntava sobre elas com verdadeiro interesse. Júlio e eu ficávamos exibidos quando ele vinha, porque nos dava atenção e tinha paciência para escutar a nossa matraca.
Era um boa praça, o Fragoso. Fazia brincadeiras com senso de humor um pouco juvenil, só para irritar alguns dos bigodudos que levavam a vida muito a sério – como aconteceu certa vez em que precisou tirar um passaporte com documentos falsos e inventou de sair na foto vestido de padre. Encarregou Virgínia de providenciar uma batina para usar na hora da fotografia e na viagem que faria usando a papelada falsa. Ela achou melhor ir ao centro da cidade com as medidas do Fragoso na bolsa, porque ele era um homem grande e não dava para arriscar a compra da batina no olho. Virgínia encontrou duas ou três lojas perto da Praça da Sé que vendiam artigos religiosos e sotainas de padres e freiras. Inventou para o dono da loja que ia presentear o irmão, que era padre de uma comunidade humilde no interior, com uma batina nova. O homem fez algumas perguntas sobre a congregação do presenteado, se era jesuíta, dominicano ou marista, e ela chutou a que achou mais plausível. Desviou de outras perguntas porque teve medo de não saber responder, embora ainda recordasse bem as coisas que a mãe falava sobre igrejas, padres e missas. O traje era mais caro do que o previsto e ela teve que completar parte da quantia, posteriormente reembolsada. Virgínia dizia que teve até pena dos padres de verdade, de paróquias mais humildes, que deviam ter dificuldade para comprar uma batina decente.
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No dia combinado, Fragoso foi até a nossa casa para se vestir de padre e tirar a fotografia. Artigas tinha um pequeno equipamento profissional, porque fotografava suas próprias maquetes: era uma máquina com tripé, um spot para iluminação e um fotômetro. Montou um fundo branco, com um lençol estendido na parede, e posicionou um banquinho para o retratado sentar. Fragoso saiu do banheiro vestido de padre, mas descalço; afinal, não havia necessidade de sapatos, pois, na foto, o padre só aparecia do peito para cima. No dia seguinte, Artigas mandou revelar o filme e, em seguida, o falso padre foi embora à paisana, com a batina embrulhada num pacote debaixo do braço. Eu nunca soube se Fragoso fez de fato o documento e viajou como religioso, ou se a história que ele próprio inventou era tão pouco convincente que acabou desistindo da empreitada. Mas ainda lembro dele circulando descalço por nossa sala e do nosso espanto infantil diante do Fragoso boa-praça transmudado em padre.
Reprodução
Livro publicado pela editora Terceiro Nome conta a trajetória política e artística de Virgínia Artigas
Mais tarde, quando eu já tinha oito anos, recebi da professora do segundo ano primário a tarefa de fazer um álbum de poesias, ilustradas com meus próprios desenhos, para uma exposição de trabalhos dos alunos, na escola, no final do ano. Dona Dorotéia destinou datas cívicas e comemorativas, organizadas em ordem cronológica, para cada página do caderno de desenho. Uma página deveria estampar o poema de algum poeta conhecido e a outra, a seu lado, a respectiva ilustração temática. Na página em homenagem a Tiradentes e à Inconfidência Mineira, não havia meio de eu encontrar um poema para copiar. Virgínia ainda tentou me fazer compreender um trecho do Romanceiro da inconfidência, de Cecilia Meirelles, mas eu era muito imatura para entender aquilo. Era um poema moderno e longo demais para os meus oito anos.
O caderno estava prontinho, faltando só o Tiradentes, quando o Fragoso chegou. Ele passaria a noite em nossa casa, à espera de um contato para uma reunião no dia seguinte. Quando coisas como essas aconteciam, ele costumava dormir no estúdio, onde havia uma estante de livros que funcionava como biombo, proporcionando certa privacidade na casa transparente do Artigas. Em geral, Fragoso saía de manhã, bem cedo, sem deixar qualquer rastro de sua passagem. Naquele dia, como sempre, perguntou como eu estava e eu, aflita, contei do caderno e do poema que faltava. Mais tarde fui dormir, mas minha mãe ainda ficou na sala desenhando e conversando com ele. No dia seguinte, sobre a escrivaninha do estúdio, nas costas de um envelope branco, havia alguns versos sobre Tiradentes que Fragoso escrevera e deixara para mim, para que eu copiasse ao lado do meu desenho. Feliz, completei o caderno.
Foi naquele dia que eu soube que o Fragoso, que nunca fora padre, chamava-se Carlos Marighella quando era poeta.
No final de 1965, após ser preso dentro de um cinema, no Rio de Janeiro, de levar um tiro e de ficar encarcerado quase um ano, ele apareceu de novo lá em casa. Apesar da vigilância sem trégua da polícia, postada dia e noite na porta da nossa casa, Marighella conseguiu entrar. Desta vez nem experimentou bater no visor de latinha da porta. Entrou diretamente pelo terraço, esgueirando-se pelo jardim até a porta de vidro, e nos encontrou na sala. Era de noitinha. Virgínia o encaminhou ao estúdio, a parte da casa mais reservada e lá ele nos contou da prisão e de como se defendeu dos tiras lutando capoeira. Abriu a camisa e mostrou a cicatriz da entrada da bala, bem embaixo do peito. Quis saber de nós, conversou um pouco e tirou do bolso da calça um jogo de canetas, embrulhado num pacotinho, que me deu de presente de aniversário. Virgínia pediu para ficar a sós com ele. Não sei o que conversaram e nunca mais o vi.
Desconfio, no entanto, que Virgínia encontrou-se com ele algumas vezes depois desse episódio, mas nunca lá em casa. Ela não comentou nada, mas deixou pistas que me levam a essa conclusão. Mesmo depois de aderir à luta armada e de fundar a ALN, em muitas ocasiões Marighella deu um jeito de mandar notícias por emissários ou amigos de amigos. Em 1969, Virgínia fez uma exposição na Galeria Azulão, e lá estava o pombo-correio do Mariga, com um bilhete para ela que, é claro, ninguém viu e ela não guardou.
Em 4 de novembro de 1969, vinte e três dias antes do seu aniversário de 54 anos, Virgínia recebeu a notícia do assassinato de Marighella. Depois vimos as fotos no jornal, o rosto dele encostado na lateral da porta do carro com o vidro estilhaçado, o sangue seco na boca e no queixo após receber o tiro fatal. Atônita, ela não sabia o que dizer, o que fazer. Naquele momento eu soube o verdadeiro significado do luto, quando o vi nos olhos de minha mãe.
Virgínia passou a ter pesadelos. Acordava à noite com pressentimentos, via a sombra do Mariga na sala, sentado no sofá. Pensava ouvir a batida na latinha do visor da porta e sentia a presença dele, espiando por detrás dos vidros do terraço. Entristeceu, deixou de cantar, parou de pintar. Passava os dias meio sem fazer nada, saía de carro sem rumo, sem dizer quando voltava. Escrevia num caderno no qual, antes, anotara a conjugação dos verbos franceses irregulares. Não queria mais aprender francês. Buscava coisas antigas em outros papéis, em caixas vazias. As lembranças não vinham, não contava mais histórias.
Sua tristeza profunda não passou despercebida dos nossos amigos, dos jovens que frequentavam a nossa casa. Alguém, acho que um dos alunos do Artigas, teve a ideia de fazer uma homenagem à Virgínia no seu aniversário, dia 27 de novembro. Uns seis ou sete jovens batiam na porta de forma sincronizada, em intervalos de minutos, e lhe entregavam um buquê de flores. Uma forma delicada de dizer que sabiam de sua tristeza e que a amavam. As flores se espalharam em vasos e vasilhas na sala, mas aos olhos de Virgínia, naquele instante, a homenagem se transformou em cerimônia fúnebre de despedida do amigo. A casa, o sofá, a porta de vidro, a cama improvisada no estúdio, a estante de livros que servia de biombo, a mesa de jantar, as paredes, tudo ali se despedia da visita frequente daquele que tinha sido padre, poeta popular e prisioneiro; do que tinha sido o Fragoso, mas era o Carlos; do forasteiro que passava sem deixar rastros; que era negro e era branco, que era velho e era moço, obstinado, boa praça, destemido, amigo, amado.
*Trecho do livro “Virgínia Artigas – Histórias de Arte e Política“, de Rosa Artigas, publicado pela Editora Terceiro Nome.