O texto abaixo (publicado originalmente em 6 de março de
2002 pelo jornal O Estado de S. Paulo) é resultado de uma entrevista feita com
o poeta pernambucano Marcus Accioly (1943-2017).
* * *
“Quero lutar o canto do meu povo”, escreve o
pernambucano Marcus Accioly num dos versos do seu mais novo poema, o épico Latinomérica
(Topbooks/Biblioteca Nacional, 2001).
Accioly, retomando a tradição homérica, busca, assim, cantar
a América e combater o fragmentarismo que, na sua opinião, tomou conta da
poesia nacional. “Uma coisa é cantar na América, outra é cantar a América;
para cantar e contar por inteiro, só mesmo o poema inteiro, que é a epopeia”,
defende o poeta. “Pelo cânone brasileiro atual, deve-se cantar o bichinho,
o pequenininho; é preciso sair desse eufemismo todo.”
Na opinião da crítica literária Nelly Novaes Coelho, que
assina a orelha da obra, “Latinomérica não é um livro de poemas; é um
livro único, um poema inteiro, a poesia que estava faltando à história, a obra
que estava faltando aos dois 500 anos, a epopeia que estava faltando à
América”.
A poesia de Accioly, autor de outros épicos,
entre eles Sísifo, é considerada por Wilson Martins “otimista e
vigorosa”. Latinomérica, assim, se pretende a grande narrativa do
continente, de suas conquistas e de suas derrotas, que, muitas vezes, se
confundem. Mas, ao mesmo tempo, adota uma divisão, que permite uma leitura
fragmentada. “Cada página tem, em si, um sentido completo”, explica
Accioly, que lembra um texto de Rubem Braga sobre Vidas Secas, de Graciliano
Ramos, no qual o comentarista afirma que a obra é um “romance
desmontável”, ou seja, seus capítulos podem ser lidos de forma
independente, como se fossem contos.
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A ideia de uma América Latina unida já foi cantada numa epopeia bem antes do cabo Daciolo fazer a sigla URSAL virar meme (Foto: Reprodução)
Assim, uma das páginas é dedicada ao poeta Vinicius de
Moraes, outra a Chico Buarque, e outra ainda a Violeta Parra. “Mas o plano
da obra é muito rigoroso”, argumenta o autor, “e quem ler os poemas
sobre os cantores que se seguem acabará percebendo que há um canto sobre os
cantores”, entre eles, Gil, Caetano, Luiz Gonzaga e Geraldo Vandré.
A maior parte do épico é composta em versos decassílabos
heroicos, semelhantes aos de Os Lusíadas, de Luís de Camões. Mas também adota
outras métricas, algumas modeladas da poesia popular nordestina.
A pontuação não é, também, a tradicional. Em vez de pontos e
vírgulas, o poema recorre a parênteses, que atuam, inclusive, alterando o ritmo
do poema.
Accioly adotou como modelo de seu poema o da luta de boxe.
São 30 rounds, ou duas grandes lutas, em que os países latino-americanos vão
enfrentando os colonizadores, revezando-se e caindo, claro que depois de muitas
invocações a musas e deuses gregos e até mesmo ao Deus cristão.
Também são lembrados outros poetas que usaram do poema épico
para contar a história do continente, como Derek Walcott, escritor do Caribe de
língua inglesa, autor de Omeros e ganhador do Prêmio Nobel de Literatura.
Segundo Accioly, a escolha do boxe se deve à proximidade que
há entre o lutador e o escritor. “Quem defende isso não sou eu, mas Joyce
Carol Oates: o lutador, como o escritor, se prepara por muito tempo para um
combate relativamente curto; estou preparando Latinomérica há 20 anos”,
diz. “O leitor é, só agora, o espectador desta minha luta solitária.”
Na luta latino-americana, os grandes heróis são os
anti-heróis: aqueles que não chegam a realizar o projeto que defendem, mas que
seguem sempre inspirando os sonhos de liberdade e/ou igualdade.
No grupo, encontram-se desde líderes indígenas, como Túpac Amaru,
a líderes negros, como Zumbi, e líderes camponeses, como Antônio Conselheiro,
passando por revolucionários, como frei Caneca, e escritores, como Ernesto
Sábato. Também há espaço para nomes da cultura norte-americana, como Hemingway
e Allen Ginsberg. “Sou um crítico da ação colonizadora dos EUA, mas
admirador de sua cultura”, explica.
TRECHO
eu não perdoo porque eu não esqueço
(como posso esquecer o que não posso?)
o mal que não tem fim teve começo
e a memória é um fóssil de remorso
dos outros e de mim (que não mereço
e clamo por justiça aos Céus) “Pai Nosso”
(lançando a minha voz feito uma lança
em direção ao Deus que é a Vingança)
perdoar é esquecer (sim) “esquecer
é perdoar” (diz Borges) sou Abel
recordando Caim que ao me bater
(ou fechar sua mão) abriu-me o Céu
(como demora em mim seu próprio ser
que me apressou a Deus) irmão cruel
(mesmo que morto muito mais te estime)
não sou feliz (pois não perdoo o crime)