Deve ser difícil viver na Espanha hoje. A crise em que está mergulhada a Europa atingiu em cheio o país, que tem lutado contra realidades indesejáveis, como a galopada do desemprego. Os interesses econômicos dos empresários espanhóis se veem ameaçados por iniciativas como a da presidente argentina, Cristina Kirchner, de nacionalizar a principal petroleira de seu país, até então nas mãos dos estrangeiros.
Mas talvez mais sintomático e assustador que tudo isso é que os cidadãos da Espanha estão sendo obrigados a assistir a um fenômeno pouco comum no mundo atual: a volta atrás nos processos de esclarecimento e direito à justiça e à verdade, materializado no afastamento do juiz Baltasar Garzón de suas funções, de acordo com a decisão recente da justiça espanhola.
Vídeo feito pelo cinesta espanhol Pedro Almodóvar em apoio a Garzón:
Garzón, o “juiz estrela”, ficou conhecido globalmente quando mandou prender o ex-presidente e ditador chileno Augusto Pinoxet em 1998, em Londres. Mas seu afã por justiça – ou por “visibilidade”, na visão de alguns – o fez famoso também por se envolver em temas espinhosos do presente e do passado, como a Operação Condor (de validação dos interesses dos Estados Unidos na América Latina através de apoios do país aos governos totalitários da região), os chamados voos da morte durante os anos de chumbo da ditadura argentina, o ETA, a prisão de Guantánamo, o franquismo e tanto outros casos que assustaram a Espanha e o mundo.
Sobre Garzón recaíram nos últimos tempos três processos, todos relacionados a abusos de seu poder como juiz. Da acusação de ter recebido patrocínio do Banco Santander, através de pessoas favorecidas por suas sentenças para ministrar palestrasem Nova York, ele foi inocentado. Da mais ampla de todas – a denúncia da organização de direita Manos Limpias de que o magistrado ignorou a lei de anistia de 1977 que libera os culpados de crimes e desaparecimentos sob o governo ditatorial de Francoao empreender investigações sobre eles –, ele se livrou formalmente, com a alegação de que crimes contra a humanidade que não podem ser sujeitos a uma anistia sob a lei internacional.
Mas não de fato, porque a condenação veio no terceiro caso, em que foi incriminado por colocar escutas em prisões para investigar crimes ligados ao narcotráfico – levando muitos à certeza de que o juiz está pagando por tocar nas bases da “sagrada” direita espanhola. Sagrada, porque tenta se manter pura e intocável como no passado, quando defendia a existência de uma Península Ibérica livre de influências indesejáveis. Porém, não incontestável, se levarmos em conta as inúmeras manifestações de carinho e apoio a Garzón, encabeçados pelas iniciativas de artistas e intelectuais como os cineastas Pedro Almodóvar e Isabel Coixet, além dos protestos que levaram várias pessoas às ruas da Espanha.
Cinema parcial
Almodóvar é responsável por um curta-metragem que circulou pela internet. Nele, atores e atrizes reconhecidos reproduzem, em primeira pessoa, histórias de vítimas do franquismo. Já sua colega Isabel Coixet foi ainda mais longe: gravou um documentário chamado Escuchando al juez Garzón, em que explicita seu apoio ao magistrando ao optar por dar-lhe voz. “Nesse país, nenhum criminoso é tratado do modo como trataram Garzón. É uma vergonha”, ela declarou. O filme, que estreou no Brasil durante o Festival do Rio no ano passado e está disponível integralmente no You Tube, foi premiado este ano como melhor documentário dos prêmios Goya, o Oscar da produção cinematográfica em espanhol.
A esses dois filmes, juntam-se os projetos de um grupo denominado Solidários com Garzón, que organiza espetáculos artísticos e manifestações em apoio ao magistrado.
É um alívio perceber que mesmo em situações em que o esforço é para se apagar a memória, o cinema é capaz de ser parcial, chegando a ser premiado por isso, e a arte pode servir como comunicação ativa e resistente ao conservadorismo cego.
Que as atuais penúrias da Espanha sirvam, pelo menos, de inspiração “ao contrário” para os latino-americanos, que só agora começamos a abrir nossos arquivos e instalar nossas comissões em busca de verdade. Que não haja nunca, pelo bem do mundo e até da lógica, uma volta atrás para nós.
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