“Nós, da geração mais velha, talvez não vivamos para ver as batalhas decisivas da revolução que se aproxima”, avisou Lenin em uma apresentação para um grupo de jovens suíços no 12° aniversário da revolução derrotada de 1905. A justaposição de suas observações e a queda do czar Nicolau II, apenas seis semanas depois, criou o cenário para uma piada clássica do movimento marxista: “Não se atrase para o protesto, pois a revolução pode começar!”
Mas estava claro em sua obra que Lenin, a essa altura, sabia que a situação política em sua pátria-mãe poderia explodir a qualquer momento. Por trezentos anos a dinastia dos Romanov governara, com mão de ferro, um império na Rússia que se expandia sendo os falantes de russo a minoria.
Longe de agonizarem no isolamento, os czares deixaram sua marca reacionária na Europa Ocidental, recrutando vastos exércitos camponeses para apoiar a monarquia e a reação frente aos movimentos democráticos e nacionalistas da Revolução Francesa de 1789 em diante. Os Romanov até conseguiram atingir o topo da lista dos inimigos mortais na frase de abertura do Manifesto Comunista. Ainda assim, na aurora do século XX, as fundações deste império estavam severamente abaladas.
Em sua História da Revolução Russa, Leon Trotsky explica a volatilidade da sociedade russa, apontando o descompasso inevitável do desenvolvimento econômico global. Nicolau estava sentado sobre sobre uma miríade de territórios e povos – um pequeno exemplo disso era seu próprio título oficial: “Imperador e Autocrata de todas as Rússias, de Moscou, Kiev, Vladimir, Novgorod, Czar de Kazan, Czar de Astrakhan, Czar da Polônia, Czar da Sibéria… e Grão-duque de Smolenski, Lituânia… e mais, e mais, e mais”.
Antes de mais nada, o czar era o maior latifundiário dentre a classe dos barões de terras que resistiram por um século ou mais em relação à contraparte feudal da Europa Ocidental – a servidão só foi abolida em 1861. Essa classe de trinta mil aristocratas possuía, aproximadamente, 765 milhões de quilômetros quadrados (as propriedades tinham, em média, 21,85 km²), mais terra do que possuíam 50 milhões de camponeses pobres e médios.
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Vladimir Ilyych Lenin fala a tropas do Exército Vermelho diante do Teatro Bolshoi, em Moscou, em 1920; embaixo à direita estão Leon Trotsky e Lev Kamenev
Além de compor “um programa pronto para a revolta agrária”, os números também denunciavam o aumento da distância entre o poder produtivo Europa Ocidental em processo de industrialização e a Rússia agrária. Preocupado que o atraso tecnológico pudesse colocar em perigo seu poderio militar, o czar apoiou-se nos bancos franceses e ingleses para financiar um exército moderno e altamente centralizado, assim como uma indústria metalúrgica centrada em São Petersburgo e alguns outros lugares. Algumas das maiores fábricas do mundo saíram do solo russo, concentrando em si uma nova classe de pessoas que não tinham nada para vender, senão sua força de trabalho. Em Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, de 1899, Lenin estimava que, por volta de 1890, os trabalhadores assalariados no país somassem dez milhões.
O czar buscou fundir este “amálgama” com a chibata. Gangues antissemitas, conhecidas como Centenas Negras, rondavam a zona rural aterrorizando judeus, o nacionalismo da Grande Rússia impedia o ensino em línguas locais e as greves eram resolvidas por meio da força militar. Na esperança de conseguir um porto na costa ocidental, ao mesmo tempo em que atiçava o fogo do patriotismo, a coroa declarou guerra contra o Japão, em 1904, mas os equipamentos e estratégia superiores dos japoneses logo despertaram o ímpeto da oposição interna.
Em nove de janeiro de 1905, centenas de milhares de trabalhadores, estudantes, e pobres marcharam atrás de um eclesiástico, Padre Gapón, implorando que o czar diminuísse o fardo que carregavam. Eles foram recebidos com baionetas e munição real que deixou centenas de pessoas sangrando até a morte nas ruas.
O “ensaio geral” de 1905, como ficou conhecido, expôs uma indignação social multifacetada: campesinato contra latifundiários, trabalhadores contra patrões e, virtualmente, o país inteiro (incluindo alguns setores da classe média e até alguns capitalistas) contra a monarquia.
Ao final de tudo, os marinheiros amotinaram-se no Encouraçado Potemkin, camponeses incendiaram mansões em um sétimo das províncias, e uma nova frase passara a integrar a consciência da esquerda internacional, como Lênin definiu, “formou-se uma peculiar organização de massa, o famoso Soviete de Deputados Operários, reunindo delegados de todas as fábricas”.
Rosa Luxemburgo – uma das fundadoras da Social Democracia do Reino da Polônia e Lituânia – generalizou para além das condições russas, anunciando a “greve de massas [como] a primeira forma natural, impulsiva, de toda a luta revolucionária do proletariado”.
Em meio à revolução, a esquerda socialista desabrochou. Nos anos que antecederam o famoso Congresso do Partido Operário Socialdemocrata Russo, em 1903, quando os bolcheviques e mencheviques uniram-se e, em seguida, se dividiram – e onde se deram também as complicadas negociações com muitas organizações socialistas de base étnica, tais como judeus, poloneses, finlandeses e outras nacionalidades – havia, talvez, cerca de dez mil partidários afiliados nas diversas facções. Até o chamado Congresso da Unidade, na primavera de 1906, outras dezenas de milhares de filiações ocorreram, e até o Congresso do Partido Operário Socialdemocrata Russo (incluindo suas ramificações nacionais), de 1907, os membros subiram para quase 150 mil, apesar da repressão brutal.
De tão aterrorizado que estava, o czar concedeu uma concessão à revolução, uma espécie de parlamento de brinquedo chamado Duma. Inicialmente, os trabalhadores urbanos sequer tinham o direito a voto aí, embora o corpo depois tenha sido alterado possibilitando a eleição de um delegado para cada dois mil latifundiários, frente à razão de noventa mil para a eleição de delegados entre os trabalhadores. Essa migalha oferecida era mais do que o desejado por Nicolau e ao mesmo tempo, sequer próximo do suficiente para aplacar a revolução; o Estado, então, transformou a Rússia em um cemitério – quinze mil pessoas foram executadas, vinte mil feridas, quarenta e cinco mil exiladas. O sangue aplacou o fogo, ao menos por um tempo.
No começo de 1912, as greves estavam em alta novamente até que a tampa estourou em uma cidade siberiana de mineração de ouro chamada Lena, onde tropas czaristas atiraram contra centenas de grevistas. A classe trabalhadora ressurgiu como uma fênix das cinzas, os partidos socialistas expandiram-se novamente, e as greves proliferaram. Em 1914, o jornal socialista Pravda tinha uma circulação diária de trinta a quarenta mil exemplares – em um país predominantemente analfabeto.
O verão de 1914 testemunhou a Rússia tensionada ao limite – o status quo tornara-se insustentável. Nicolau declarou guerra à Alemanha em 19 de julho de 1914. Desta vez, mais do que um conflito contido com o Japão na sua fronteira oriental, a guerra contra a Alemanha e o Império Austro-Húngaro trouxe a fome e a pestilência às portas da monarquia.
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No entanto, nos primeiros dias da guerra, uma onda de entusiasmo patriótico sustentou o posicionamento do czar. Centenas de milhares de garotos e jovens camponeses correram para juntar-se ao exército e os grupos nacionalistas polvilhavam as praças das cidades e das vilas.
Ao mesmo tempo, todos os conflitos que conduziram a 1905 voltaram a efervescer. A Grande Guerra entregava “túmulos compactos”[1] para as massas russas em uma escala quase impossível de imaginar. A I Guerra Mundial patrocinou o espetáculo do sistema social mais atrasado e subdesenvolvido do continente, enfiado até a cabeça em uma luta de vida ou morte com a mais avançada economia industrial do mundo. Os resultados foram aterradores.
Três milhões de soldados do exército imperial do czar morreram, outros quatro milhões foram feridos, e algo em torno de três milhões de civis morreram por causas relacionadas à guerra – isso tudo numa população aproximada de 175 milhões. Frente à tecnologia militar alemã, o czar enviou centenas de milhares de soldados precariamente armados e mal equipados para a morte certa. Ao longo dos invernos de 1915, 1916, e 1917, dezenas de milhares de soldados simplesmente morreram congelados em suas trincheiras.
Enquanto isso, a corte real afundava em novos níveis de devassidão. Um eclesiástico místico chamado Grigori Rasputin detinha o controle sobre a czarina Alexandra, exigindo que seu marido punisse todos os sinais de deslealdade, tal como Ivan, o Terrível havia feito. A influência dele era tamanha que os aristocratas russos o assassinaram, na esperança de reconquistar a influência sobre Nicolau e sua política de guerra. Tendo, por séculos, bebido do poço real, os barões agora temiam ser envenenados por seu corpo político putrefato. Como Tsuyoshi Hasegawa relata, o casal real “recusava-se a entender o mundo exterior”.
Os levantes camponeses aumentaram conforme a guerra se arrastou, assim como em 1905, mas agora eles já se concentravam em uma nova forma; a dizer, no conflito entre os oficiais da aristocracia e os soldados camponeses nas trincheiras. Cada vez que um oficial ordenava um avanço suicida sob fogo alemão, não eram somente as vidas desses soldados do campo que estavam em jogo, mas também o próprio futuro da família que dependia do retorno dos seus filhos ao lar, tanto para o cuidado como para o trabalho. Além disso, alimentar o exército tirava o sustento das famílias rurais e as sementes para as colheitas do ano seguinte.
Talvez Nicolau, ou pelo menos a monarquia, sobrevivesse à crescente raiva do campesinato, às catastróficas perdas militares, e ao descontentamento dentro de sua própria classe. Porém, um inimigo ainda mais potente se erguia. Assim como a guerra enchera as trincheiras de sangue, ela enchera São Petersburgo de proletários. A mesma classe trabalhadora que havia lutado contra o regime até o impasse de 1905 e que sofrera terrivelmente por seus esforços, era responsável agora por produzir e distribuir cada rifle, cada projétil, cada estojo, cada vagão, dos quais dependia a guerra do czar. E mais: Nicolau não tinha escolha senão fortalecer esse adversário.
Hasegawa relata que, entre 1914 e 1917, o número de trabalhadores em São Petersburgo cresceu de aproximadamente 242 mil para 392 mil, algo próximo de 62%, sendo as mulheres um quarto de todos os trabalhadores. As greves esfriaram no começo patriótico da guerra – por exemplo, enquanto aproximadamente 110 mil trabalhadores entraram em greve antes da guerra, em 1914, em homenagem ao Domingo Sangrento, apenas 2.600 pararam em 9 de janeiro de 1915. Entretanto, conforme os esforços de guerra colapsavam, as greves voltaram se proliferar. Em um período de seis meses, entre setembro de 1916 e fevereiro de 1917, por volta de 589.351 trabalhadores pararam e cerca de 80% deles participavam de greves políticas.
Além disso, em meio a esse movimento de massas, as obstinadas organizações socialistas construíram uma longa luta para implantarem-se entre os trabalhadores. Milhares de revolucionários perderam suas vidas em 1905, ou em decorrência da repressão que se seguiu; outros milhares foram recrutados e enviados para o front em uma tentativa de expurgar o movimento operário de organizadores forjados no calor da batalha. Na verdade, a polícia czarista chegou perigosamente perto de erradicar a esquerda socialista organizada em diversos momentos; no entanto, as sementes de mais de uma dúzia de anos de confrontos, organização de partidos clandestinos e educação socialista tinham firmado raízes.
Ao contrário da Alemanha e da França, nas quais as lideranças das organizações socialistas mais importantes apoiavam suas próprias classes dominantes na I Guerra Mundial, a maior parte do movimento socialista russo adotou princípios internacionalistas contrários à guerra. Como um todo, São Petersburgo estava repleta de socialistas revolucionários, organizados em grupos operacionais em diversos estados de competição e cooperação, incluindo bolcheviques, mencheviques, internacionalistas,[2] SRs, e até anarquistas.
É claro que, dentre eles, havia alguns patriotas sociais famosos, sendo o mais notável o líder menchevique direitista Georgi Plekhanov, o “pai do marxismo russo”, que, tanto Lenin quanto o menchevique-internacionalista Julius Martov, um dia consideraram como mentor.
Por fim, as primeiras semanas de 1917 chegaram perto de encontrar o que Lenin sugeriu serem as premissas para a “lei fundamental da revolução”, ou seja:
“Somente quando as ‘classes baixas’ não quiserem viver da maneira antiga e as ‘classes altas’ não conseguirem sustentar a velha forma é que a revolução poderá triunfar”.
No Império russo, a classe trabalhadora não estava sozinha na resistência contra as condições surgidas da guerra. Karl Liebknecht rompeu com a liderança pró-guerra do Partido Socialdemocrata Alemão e votou contra os financiamentos à guerra no parlamento; na cadeia, Rosa Luxemburgo escreveu o Panfleto Junius; soldados franceses e alemães declararam uma trégua unilateral de Natal e a esquerda do Partido Socialista Americano e a Trabalhadores Industriais do Mundo[3] opôs-se veementemente à vontade bélica de Woodrow Wilson.
No entanto, a profundidade da crise social, econômica e militar na Rússia, somada à consciência política e organização da classe trabalhadora (em conjunto com as crescentes revoltas entre os soldados, camponeses, estudantes e nacionalidades oprimidas), estavam muito à frente de qualquer outro lugar do mundo no inverno de 1916-1917.
Acima de tudo isso, havia a bela ilusão (se não universalmente difundida, ao menos suficientemente comum) que mantinha unido o amplo movimento anticzarista. Isto é: decepar a cabeça da monarquia para que a paz, a democracia e a prosperidade possam chegar à Rússia.
Não demorou muito para o movimento revolucionário russo colocar sua teoria à prova. Fevereiro foi apenas o começo.
Notas
[1] Graças à grande quantidade de cadáveres, os túmulos eram feitos quase sem espaço entre um e outro. (N. T.)
[2] Internacionalistas ou mejraióntsy eram uma facção independente do Partido Social Democrata Operário Russo. Em abril de 1917, o grupo decidiu unir-se aos Bolcheviques. (N. T.)
[3] Industrial Workers of the World (IWW), central sindical americana fundada em 1905. (N. T.)
*Publicado originalmente no site Jacobin e traduzido por Rafael Bonavina para o blog Junho.