Nos dois meses em que esta coluna deu folga aos leitores, a economia brasileira surpreendeu pelo crescimento em praticamente todos os indicadores; o braço de ferro com o centrão continuou mostrando as aporias de nosso sistema político; Lula esteve no G7 e na cúpula dos BricsPresidência rotativa do Mercosul e do G20 e abriu protocolarmente a 78ª Assembleia Geral da ONU com um discurso que muitos consideraram histórico e até Eliana Cantanhede, do alto de seu portentoso descortínio intelectual, saudou porque “Lula deixou de falar besteira”.
Neste mesmo período um alerta vermelho chegou do vizinho mais importante, política e economicamente, para o papel de liderança regional que constitui, além da histórica posição multilateralista interrompida apenas nos quatro anos em que Jair Bolsonaro nos reduziu à condição de pária, nosso principal ativo no jogo geopolítico.
Argentina e Brasil representam juntos 63% da área total da América do Sul, 60% da população e mais de 60% do seu PIB. Portanto, rivalidade futebolística à parte, para que valha a máxima de Richard Nixon de que “para onde se inclinar o Brasil, se inclinará a América Latina”, o prumo da Argentina é essencial. Especialmente em um momento em que os governos de Paraguai e Uruguai se orientam à direita e a Venezuela continua suspensa do grupo.
Por isso o resultado das Paso – Primarias Abertas Simultâneas e Obrigatórias – de 14 de agosto, atraiu atenção em todo o planeta e especial preocupação no Brasil.
As Paso têm o papel de definir os candidatos à Presidência da República e seu resultado surpreendeu o mundo político, com o candidato de extrema direita Javier Milei, parlamentar obscuro e folclórico, obtendo quase 30% dos votos. Ele perdeu para a abstenção de 31%, mas venceu as coalizões tradicionais da política argentina: a liderada por Patricia Bullrich, apadrinhada do ex-presidente Mauricio Macri, obteve 28% dos votos, e a peronista, com o ministro da Economia Sérgio Massa à frente, recebeu 27%.
Javier Milei não deixou desde então de causar espanto por suas declarações que vão do mirabolismo econômico – dolarização imediata da economia, redução radical do Estado e fim do Banco Central – ao ultra direitismo político – elogio do thatcherismo, defesa da ditadura militar e ameaça de rompimento da ordem constitucional.
Ante as dificuldades de reação do establishment político, em grande parte responsável pela adesão ao “que se vayam todos”, equivalente ao nosso “contra tudo isso que está aí”, a sociedade civil começa a reagir à ameaça de retrocesso naquilo de mais importante que o país vizinho conseguiu nas últimas décadas. Diferentemente do Brasil, o julgamento dos militares responsáveis pela ditadura e pelo desastre das Malvinas estabeleceu um pacto democrático sólido que enfrenta agora o seu mais perigoso desafio.
Reprodução / @JMilei
Milei venceu as primárias argentinas com 30% dos votos
Foi esse quadro que levou à divulgação do documento intitulado “Compromiso Electoral: ante las amenazas a la democracia”. A inciativa dos professores e pesquisadores Hugo Vezetti, Claudia Hilb, Alejandro Katz e Adrián Gorelik, logo teve a adesão de pesos pesados da intelectualidade argentina, como Carlos Altamirano, Beatriz Sarlo, Oscar Cetrángolo, Roberto Gargarella, Hilda Sabato e Maristela Svampa.
Após viralizar nas redes e na grande imprensa, o manifesto já tem milhares de adesões, e o que o jornal La Nación chamou de “intervenção inédita na história democrática” parece ter chacoalhado o torpor da sociedade civil e se articulado com reações de outros setores, como os economistas e os juristas, que também se pronunciaram publicamente. Até mesmo a Igreja Católica se alçou contra Milei, que chegou a chamar o Papa Francisco de “maligno”.
O manifesto adverte que “é a primeira vez em 40 anos de democracia que candidatos com discursos que promovem a violência social e política, o desconhecimento de toda ideia de equidade e, muito especialmente, a reivindicação da ditadura militar, chegam com grandes possibilidades de triunfo a uma eleição presidencial”.
Afirmando sérias dúvidas sobre a capacidade dos dois blocos políticos tradicionais para tirar o país desse impasse, e dada a impossibilidade de construir uma frente eleitoral democrática, propõe três medidas.
Imediatamente, a convocação de líderes da sociedade civil para uma campanha pública de defesa dos valores democráticos. Em termos eleitorais, a superação do absenteísmo pelo chamado a toda a cidadania democrática a votar nos seus próprios candidatos no primeiro turno, previsto para 22 de outubro. E finalmente o compromisso explícito de todas as coligações concorrentes de que, caso Milei seja um dos candidatos no segundo turno, chamarão a votar “em quem o enfrente, seja quem for.”
Os signatários confessam explicitamente tomar como exemplo a vitória de Lula sobre Bolsonaro. A experiência brasileira, afirmam, “demonstra que a divisão de setores democráticos da sociedade foi o que fez possível o triunfo do bolsonarismo, que durante quatro anos impôs ao país um retrocesso dolorosíssimo.”
Conscientes dos limites de sua proposta, deixam claro que o que estão propondo “não é a uma solução para os gravíssimos problemas do país; é simplesmente a tentativa de poupá-lo de quatro anos em que esses problemas só se agravarão e o farão em uma direção inédita e de consequências impensáveis para a frágil democracia e a dolorida sociedade argentina”.
(*) Carlos Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP, campus de São Carlos.