A história da América do Sul na segunda metade do século XX é marcada pela presença de ditaduras militares. O Brasil iniciou este ciclo de governos militares baseado na doutrina de segurança nacional em 1º abril de 1964, logo após foi a Bolívia, em novembro de 1964, a Argentina, em 1966 e depois 1976, e Chile e Uruguai, em 1973. Com as Forças Armadas assumindo o papel de dirigentes políticos e agentes da repressão, mantiveram-se no poder por meio de violenta repressão contra as forças populares e as instituições democráticas.
Esses regimes originam-se no clima de guerra fria então vigente, sendo apoiados estratégica e programaticamente pelos Estados Unidos, que buscavam evitar o surgimento de uma “nova Cuba” com sua luta contra o comunismo. Além disso, foram governos ditadores que promoveram a hegemonia do grande capital internacionalizado, reprimiram as reivindicações sociais dos trabalhadores, debilitaram os serviços públicos em favor dos privados e apoiaram as posições norte-americanas em política externa. Contudo, apesar destas características que interligam essas ditaduras, são também muitas as diferenças.
A brasileira, instalada ainda no longo ciclo expansivo do capitalismo internacional, e aproveitando da estrutura industrial já iniciada na década de 40, pôde beneficiar-se de investimentos e colocar em marcha um novo ciclo expansivo na economia do país, mantendo a presença do Estado mediante empresas estatais. O período conhecido como “Milagre Econômico”, de 1967 a 1973, teve crescimento de até 13% ao ano. Mas, socialmente, o que isso representou?
Primeiramente é preciso dizer que o golpe militar no Brasil tem também como função abortar as possíveis reformas de base que João Goulart vinha propondo, sendo elas: 1) Reforma Eleitoral: o governo pretendia aumentar a participação popular nas eleições, tirando a restrição de analfabetos e militares de baixa patente de votar; 2) Reforma Administrativa: ampliação dos concursos e criação de órgãos públicos mais adaptados à realidade econômica daquele momento; 3) Reforma Tributária: aumentar a arrecadação, diminuir o déficit público e tornar o sistema como um todo mais progressivo, isto é, mais pesado para quem é mais rico; 4) Reforma Bancária: implementar um órgão centralizado e autônomo para a direção da política monetária, pois ainda não existia o Banco Central; 5) Reforma Universitária: ampliar as garantias de liberdade docente, abolir o sistema de cátedra e criar um sistema de departamentos; 6) Reforma Cambial: controle das cotações cambiais; 7) Reforma Urbana: a principal medida consistia em colocar limites em quantos imóveis uma pessoa poderia ter, de modo que os imóveis excedentes seriam desapropriados pelo governo e vendidos a quem precisasse, com prazos de financiamento longo e juros subsidiados, somaria-se a isso investimentos em construção de moradias populares; 8) Reforma Agrária: manter o direito de propriedade, mas com uso condicionado ao bem-estar social, proibindo manter terra improdutiva.
Sem dúvida a reforma agrária se transformou no principal eixo das reformas de base de Goulart, colocando em debate a ampliação do acesso à terra e o combate à miséria e às desigualdades históricas no campo. Trabalhadores rurais passariam a ter direitos que antes cabiam somente aos trabalhadores urbanos, como acesso à Previdência e salário mínimo. “Como garantir o direito de propriedade autêntico quando, dos quinze milhões de brasileiros que trabalham a terra no Brasil, apenas dois milhões e meio são proprietários?”, questionava João Goulart, no histórico Comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964. Entretanto, a oligarquia rural brasileira não estava nada satisfeita com essa possibilidade, de tal modo que entre os principais opositores a Jango e sua política agrária estava a Sociedade Rural Brasileira (SRS), organização centenária que nasceu na República Velha e que permanece até hoje como um dos templos do agronegócio no país. A SRS apoiou e colaborou com o golpe de 1964, garantido assim que a reforma agrária não fosse implementada.
No campo do que seria feito caso o golpe não tivesse ocorrido, muito já se foi perdido: de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1960, 20% dos brasileiros mais pobres detinham 3,9% do total da renda nacional. Vinte anos depois, em 1980, 20% da população mais pobre concentravam apenas 2,8% da renda produzida no país.
O período do chamado “milagre econômico” é de forte concentração de renda, sendo dessa época a famosa frase do então ministro Fazenda, Delfim Netto: “é preciso crescer para depois distribuir”. Mas, como bem já disse Maria Conceição Tavares, “uma economia que diz que precisa primeiro estabilizar, depois crescer, depois distribuir, é uma falácia. E tem sido uma falácia. Nem estabiliza, cresce aos solavancos, e não distribui” – e foi bem isso que aconteceu. Em 1974, após o chamado milagre econômico, o salário mínimo tinha a metade do poder de compra de 1960. Em contrapartida, nos anos do milagre, a taxa de crescimento econômico ficou em torno de 10%. A indústria de transformação cresceu quase 25%. Na média anual, entre 1965 e 1974, o salário mínimo manteve apenas 69% do poder aquisitivo de 1940. Isto é, houve um aumento da receita pública, um aumento da receita do capital e uma queda na receita do trabalho.
Além da concentração de renda, o país passou a enfrentar problemas com o choque do petróleo, em 1973, que passa a produzir efeitos sobre a dívida pública tanto de modo interno como externo. As contas públicas foram prejudicadas, o valor da dívida externa aumentou vertiginosamente, assim como a inflação nos anos seguintes. Percebe-se então que os ganhos reais do crescimento econômico foram distribuídos de forma desigual, aumentando a concentração de renda e a desigualdade social a níveis nunca vistos antes. O Brasil precisava crescer, mas fez isso subtraindo a democracia, aumentando a desigualdade e retirando de pauta reformas estruturais que poderiam ter mudado o rumo do país. Não se pode considerar isso positivo sem exibir muito claramente as consequências. Uma economia que se preze deve sustentar a ampliação e o avanço da democracia e a redução da desigualdade, sabendo que ambas se condicionam mutuamente.
(*) Bianca Valoski é doutoranda no Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas da UFPR, dentro da linha de pesquisa em Economia Política do Estado Nacional e da Governança Global. É servidora da Câmara Municipal de São José dos Pinhais, onde trabalha com finanças públicas.