No dia 22 de setembro de 2023, chegava ao fim a história da Livraria Saraiva. O Conselho de Administração da empresa aceitou o pedido de demissão do diretor presidente e diretor de Relações com o Mercado, Jorge Saraiva Neto, e do diretor vice-presidente da companhia, Oscar Pessoa Filho. Além disso, foi anunciado o fechamento das lojas, uma vez que o projeto de recuperação judicial, apresentado em 2018, não foi bem sucedido e é bastante possível que seja decretada a falência do grupo.
A Saraiva nasceu como uma livraria em 1914, portanto há mais de um século. Sua crise coincidiu com a de outra rede de livrarias, a Cultura, cujo desenlace é semelhante.
Embora culturalmente a Saraiva fosse uma operação comercial menos interessante, a rede de livrarias, por sua capilaridade e também por uma certa homogeneidade entre as diferentes lojas – o que não era o caso da Cultura –, ela era, em tese, um negócio mais bem estruturado que a Cultura.
Em defesa da Saraiva e da Cultura, vale dizer que projetos semelhantes no mundo, como a Borders e a Barnes & Noble, também entraram em crise. A Fnac precisou se associar à Darty e deixou de atuar no Brasil. Na França, a FNAC manteve-se ativa após várias mudanças em seu modelo de negócios, e nos Estados Unidos a Barnes & Noble vive hoje um processo de recuperação, depois de reverter políticas como venda de vitrines e descontos agressivos nos lançamentos.
As qualidades comerciais da Saraiva, no entanto, não foram suficientes para evitar a debacle. O que, então, explicaria o insucesso da Saraiva? O que impediu que um negócio bem pensado não conseguisse reverter esta crise, considerando a história centenária do grupo?
Em outras palavras: era possível salvar a Saraiva? Talvez, mas seria preciso desfamiliarizar a administração, barrar qualquer tipo de retirada pelos sócios (lucro ou salário) e reduzir drasticamente os valores pagos a seus executivos.
Além disto, muita gente vaticinou que houve um erro estratégico no passado: em junho de 2015, a editora, a parte mais estável da organização, foi vendida para o grupo Somos Educação por R$ 725 milhões. Com isso, o grupo perdia a perna que era capaz de sustentar o negócio nos tempos de queda de vendas. Para muita gente, foi ali que se desenhou o colapso da rede de livrarias, que passava a depender mais e mais do sistema financeiro para cobrir seus rombos.
Contra a Saraiva, pesava a cultura administrativa centenária e familiar, o que muitas vezes inibe os reinvestimentos, e uma situação conjuntural de decrescimento econômico do setor de venda de livros (são mais de 30 anos de redução real de tamanho e mais ainda em comparação com o PIB brasileiro).
A chegada da Amazon ao país ampliou os desafios, mas os problemas que levaram ao desmonte já estavam presentes. E, finalmente, há uma questão complexa, mas que precisa ser sempre mencionada, que é a multiplicação de textos de acesso gratuito ou pago por instituições, e não por indivíduos, na internet, especialmente na área científica, o que reduz naturalmente o mercado das livrarias.
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História centenária da livraria foi atropelada por crise estrutural e por escolhas equivocadas na administração e na economia
Uma reestruturação do negócio Saraiva, assim, exigiria, entre outros aspectos, abrir mão de pontos de venda de aluguel caros e apostar por lojas menores nas proximidades destes pontos; além de abrir lojas-estoque maiores em áreas de aluguel mais vantajoso e com bom movimento. Tudo teria de ter sido feito antes da recuperação judicial, pois o processo de reorganização de uma empresa deste porte fica ainda mais complexo quando tem de ser examinado pelo judiciário.
Lembremos também que Saraiva e Cultura cresceram exponencialmente graças a uma política equivocada do BNDES nos anos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016) para o setor, que financiou a expansão das grandes redes reproduzindo processos que funcionaram melhor em outros setores da economia. No mercado de livros, no entanto, as fusões e expansões são mais complexas, porque o livro é uma mercadoria muito particular, com uma variedade de produtos e de públicos que cria obstáculos específicos. Ao contrário do que acontece em outros mercados, os ganhos de escala são pequenos, porque o mercado editorial é necessariamente pulverizado em editores, autores e títulos.
Com o impeachment de Dilma, em 2016, a situação piorou: passamos de uma política equivocada para nenhuma política. Saraiva e Cultura já não podiam se fiar em novos empréstimos subsidiados, que permitiram a expansão rápida nos anos 2000 e 2010, para mascarar as dificuldades do dia a dia.
Curiosamente, nem Saraiva nem Cultura pareciam ser críticas a Bolsonaro. Pelo contrário. Também foram as últimas empresas nacionais a embarcar na defesa do preço comum do livro (há um projeto de lei que regula a questão em tramitação no Congresso, limitando os descontos no ano de lançamento dos livros; essa regra foi muito bem sucedida na França, adotada em 1981, e em outros países, como Itália, Espanha, Argentina e Portugal, onde levaram à criação de livrarias e à redução do preço médio do livro. O Reino Unido, que não o adotou, assistiu aos livros ficarem mais caros e viu livrarias fecharem nas últimas décadas.
A debacle de Saraiva e Cultura é também, assim, num certo sentido, resultado da adesão dessas redes ao neoliberalismo e ao bolsonarismo. Elas, sobretudo a Cultura, trocaram seus leitores fiéis por consumidores de livros de Olavo de Carvalho e Brilhante Ustra. O desejo destrutivo encontrou seu par autodestrutivo, que corroeu as possibilidades de restruturação.
Se entendessem de livros, ou se estivessem preocupados com livros, teriam essas obras, no máximo, no fundo da loja, jamais na prateleira principal. Não foi a política adotada. Talvez, isto tenha tenha sido bom para acionistas e proprietários das redes, mas seguramente espantou definitivamente muito comprador contumaz de livros.
(*) Haroldo Ceravolo Sereza é jornalista e crítico literário. É diretor de redação de Opera Mundi e autor dos livros ‘Florestan – A inteligência militante’ (Boitempo, 2005) e ‘O Naturalismo e o Naturalismo no Brasil’ (Alameda).