Em dezembro de 2007, em palestra na Universidade de La Paz, o vice-presidente da Bolívia, Álvaro Garcia Linera, lançava a tese do ‘empate catastrófico’, que consistia basicamente no fato de coexistirem no país duas forças ideologicamente antagônicas com sustentação social, equivalentes em força política e até geograficamente separadas.
No altiplano, ocidente da Bolívia, lideradas pelo presidente Evo Morales, as organizações de camponeses, mineiros, trabalhadores urbanos, parcelas importantes da classe média, entidades representativas das nações indígenas e seu principal componente político, o MAS (Movimento ao Socialismo). No Oriente, região mais rica, onde se localizam os poços petrolíferos e as jazidas de gás, e também as áreas do agronegócio, também populosa, Santa Cruz, Tarija e outros departamentos que integram a chamada ‘media luna’, liderados por Ruben Costas, governador de Santa Cruz, e Branco Marinkovic, opulento industrial e fazendeiro, a oligarquia boliviana, detentora dos grandes meios privados de comunicação, amplos setores do empresariado urbano e rural, a maioria da classe média e setores populares urbanos e do campo. Representando esse setor da sociedade, seu principal partido de direita, o Podemos (Poder Democrático e Social), liderado pelo ex-presidente Jorge Quiroga.
Com a eleição de Evo Morales, estabeleceu-se uma queda de braço, sem que nenhum dos lados pudesse prevalecer. O presidente conseguiu, com o lastro político decorrente de sua eleição em inédito primeiro turno, levar adiante algumas de suas principais bandeiras: a nacionalização dos hidrocarbonetos e medidas no âmbito social de proteção aos idosos e crianças. No entanto, a nova Constituição de refundação do Estado boliviano patinava. Na Assembléia Constituinte, Evo tinha maioria, mas não maioria qualificada de dois terços. As instituições como o Poder Judiciário estavam esvaziadas e os projetos econômicos não avançavam. A correlação equilibrada de forças levava paulatinamente o governo a uma certa paralisia propícia à sua desestabilização. Era o ‘empate catastrófico’ que haveria de ser decidido a favor de um dos lados.
Quando o Senado da Bolívia, em que a oposição a Evo Morales tem maioria, aprovou no final de junho de 2008, sem emenda, a proposta do referendo revogatório do mandato presidencial, a cena política se cobriu de estupefação. Os dirigentes do Podemos queriam retomar o papel protagonista que lhe havia sido retirado pelos governadores dos departamentos de Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando, a que se somou mais tarde o de Chuquisaca.
A avaliação das forças de oposição, da oligarquia e seu braço fascista-racista, a União Juvenil Cruzenhista, da totalidade dos grandes meios de comunicação privados e do embaixador norte-americano Philip Goldberg era de que o presidente tinha dobrado os joelhos: perdera a bandeira da autonomia departamental para os seus inimigos, mal podia transitar nos territórios da meia- lua. Os movimentos populares, base de apoio político do presidente, apresentavam algumas fraturas, a oposição mostrava força política pois tinha ganho os ‘referendos autonomistas’ nos quatro departamentos, desrespeitando até a manifesta ilegalidade da convocação. A tese da secessão e do desmembramento da Bolívia prosseguia. Era chegado o momento de dar o cheque-mate, que viria com fundamentos de legalidade, a afastar qualquer rejeição interna e internacional.
Em 10 de agosto, Evo conquista o país
Evo recebe do presidente do Senado o projeto de referendo revogatório com data marcada para 10 de agosto e o sanciona. Com o correr dos dias, a oposição começa a perceber que distintos setores da sociedade passam a apoiar o presidente e cria travas para sua realização. Evo, astuto, concorda com mudanças nas regras do projeto do referendo. Os mandatos dos governadores só seriam revogados se 50% mais um dos votantes decidissem pela extinção dos seus mandatos, e não mais se a quantidade e a porcentagem de votos pela revogação superassem o que haviam obtido nas eleições anteriores.
Chegou o 10 de agosto. Presidente e vice confirmados. Quatro governadores de oposição confirmados, dois rejeitados; dois governadores favoráveis ao governo confirmados. Uma governadora de oposição não passou pelo referendo porque havia sido recentemente eleita. Evo consolida sua posição. Teve em toda a Bolívia 67% dos votos, 13% mais do que na eleição presidencial. Mais do que o governador golpista de Santa Cruz, Ruben Costas, teve em seu reduto, 64%. Nas regiões dominadas pela oligarquia, especialmente Santa Cruz e Tarija, Evo recebeu mais de 40% dos votos.
A oposição desesperada resolve partir para o tudo ou nada. O objetivo é criar o caos, desestabilizar o governo e derrocar Evo por meio de golpe de Estado: massacre em Pando, atos terroristas em Tarija e Santa Cruz com a explosão de dutos que levam gás ao Brasil e Argentina, invasão, destruição e ocupação de bens públicos pertencentes ao governo central. A conjuntura se torna extremamente tensa. Evo resolve expulsar o embaixador estadunidense.
Os presidentes dos países da região, por unanimidade, decidem respaldar Evo Morales e propõem a volta à mesa de negociações. Depois de idas e vindas e incessantes chicanas alimentadas pela mídia e seus colunistas, tudo com o intuito de levar ao fracasso as negociações, criar um grande impasse e a paralisia da nação, desgastar o governo e fazer voltar tudo ao status quo anterior.
Evo resolve partir para a ofensiva. Dá por encerrada a negociação com os governadores e envia ao Congresso – senadores e deputados – a tarefa de revisar a nova Constituição e determinar prazo para sua aprovação em referendo popular. Uma colossal marcha de Oruro a La Paz, com centenas de milhares de participantes, pressiona os congressistas, que em 10 horas ultimaram os trabalhos de revisão, marcando o referendo para o dia 25 de janeiro de 2009 e eleições gerais para Presidência, Senado e Câmara para 6 de dezembro de 2009.
Opositores e igrejas juntos
Com a oposição golpista desbaratada, acusando-se uns aos outros de traidores, governadores da meia-lua bradando no deserto que não vão respeitar a decisão, oposição legal fragmentada, os meios de comunicação lamuriando-se em editoriais, o cenário era de esmagadora aprovação da nova Constituição. No entanto, a direita e os setores conservadores – como ensina a história -, vendo ameaçados seus interesses e visão do mundo, reagruparam suas forças e partiram para a disputa. Trouxeram para o seu lado a Igreja Católica e a Igreja Evangélica tentando equilibrar o jogo.
O processo do referendo foi justo, limpo, democrático e transparente. O comparecimento às urnas foi de mais de 90%. A Constituição Política do Estado de refundação da nação boliviana foi aprovada por significativa maioria de 61% a 39%. Uma vitória dos setores historicamente excluídos e explorados. Pôs fim a um Estado neocolonial e neoliberal. “Ficou para trás a chamada meia lua para dar passagem à lua cheia, que é a Bolívia unida e digna”, exclamou Evo Morales.
A Constituição moderniza a estrutura estatal e abre as portas para uma nova etapa de transformações políticas, econômicas e sociais, mas precisará de muitas leis ordinárias que a regulamentem. As forças de oposição, da oligarquia conseguiram reter força nada desprezível em seus redutos e vão querer sustentar as teses da autonomia e até da secessão. A composição do parlamento não é de todo favorável ao governo. Para avançar, Evo terá de negociar. Numa das mãos, punho de ferro em defesa dos princípios fundamentais da Constituição; na outra, luva de pelica para garantir a governabilidade. Não será fácil.
Já no horizonte, em 6 de dezembro, desponta uma nova travessia do Rubicão: eleições presidenciais e renovação do Congresso. O seu resultado poderá desempatar o jogo.
* Max Altman é advogado, jornalista e presidente do Comitê Brasileiro pela Libertação dos 5 Patriotas
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