Nas eleições municipais de 1947, os eleitores da cidade de Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, elegeram o primeiro prefeito comunista da história do Brasil — o médico Manoel Calheiros, ligado ao PCB. O fato
deixou a elites locais indignadas e rendeu à cidade um apelido jocoso que persistiu por décadas: “Moscouzinho”. Fundado em 1922, o Partido Comunista do Brasil (antigo PCB) foi alvo de perseguição, censura e boicote durante a maior parte de sua existência. O partido foi posto na clandestinidade apenas três meses após sua criação e teve de desenvolver diversas estratégias para prosseguir com sua atuação política.
O PCB recuperou a legalidade em 1930, mas seus vínculos com a Aliança Nacional Libertadora (frente antifascista que fazia oposição aos integralistas e ao governo de Getúlio Vargas) e sua participação no Levante Comunista de 1935 desencadearam uma violenta repressão.
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Banido, o PCB só retornaria à legalidade em 1945, quando se iniciou o processo de redemocratização. Reorganizado durante a Conferência da Mantiqueira e autorizado a atuar legalmente, o PCB conseguiu se reposicionar como um partido de massas. Além de ter conduzido uma campanha bem sucedida de articulação junto ao movimento operário, estudantes e intelectuais, o partido foi muito beneficiado pela imagem positiva projetada pela recente vitória da União Soviética sobre os nazistas na Segunda Guerra Mundial. À época, o PCB chegou a agregar mais de 200 mil filiados — incluindo vários expoentes da cultura brasileira, de Cândido Portinari a Dorival Caymmi — e ganhou a alcunha de “Partidão”.
O apoio da classe artística e intelectual facilitou a criação de uma ampla rede de mídia alternativa sob comando do partido, composta por uma agência de notícias (Interpress), duas editoras, oito jornais diários, diversas revistas e semanários e até mesmo um serviço de cinejornal. Esse contexto permitiu ao PCB obter ótimos resultados eleitorais em meados dos anos 40. Na eleição presidencial de 1945, o candidato do partido, Iedo Fiúza, conquistou 10% dos votos. No mesmo pleito, o PCB elegeu 14 deputados constituintes e um senador. No ano seguinte, nas eleições para as assembleias estaduais, o PCB elegeu 46 deputados em 16 unidades da federação. Na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, o PCB elegeu a maior bancada, com 18 parlamentares.
O sucesso eleitoral do PCB, em meio ao contexto de intensificação da Guerra Fria, incomodou os setores conservadores e o governo brasileiro, então presidido por Eurico Gaspar Dutra. Em 1947, o partido teve seu
registro cancelado. Os parlamentares comunistas teriam seus mandatos cassados no ano seguinte. Jogado novamente na clandestinidade, o partido passou a costurar alianças e coligações com outras legendas para poder lançar seus candidatos nas eleições municipais de 1947.
A manobra deu certo. Os postulantes oriundos do PCB obtiveram um ótimo desempenho nos grandes centros operários. Na cidade de São Paulo, os comunistas fizeram a maior bancada, elegendo 15 vereadores — mas todos foram impedidos de assumir por ordem judicial. O mesmo ocorreu com os 14 vereadores eleitos pelos comunistas em Santos. Em Santo André, onde os candidatos do PCB se lançaram pelo Partido Social Trabalhista (PST), os comunistas elegeram 13 vereadores, além do prefeito, Armando Mazzo, mas o Tribunal Superior Eleitoral ordenou a anulação de todos os votos da legenda.
Em Pernambuco, a candidatura do comunista Gregório Bezerra à prefeitura do Recife tinha boas chances de ser vitoriosa, mas uma manobra do Congresso suspendeu a eleição direta para o executivo municipal. Os candidatos à vereança, entretanto, se saíram bem. Na capital pernambucana, conquistaram 12 dos 25 assentos da Câmara
Municipal. Também fizeram a maior bancada de Olinda, emplacando oito vereadores. E na cidade de Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife, os comunistas celebrariam um marco histórico — a eleição de Manoel Calheiros, o primeiro prefeito comunista a tomar posse no Brasil.
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Folha do Povo, Recife, 30 de outubro de 1947, 1ª página.
Natural de Alagoas, Manoel Calheiros se formou em medicina, passando a atuar como ginecologista e obstetra. Em 1930, quando ainda estava filiado ao Partido Republicano Paulista, foi nomeado prefeito de Borborema, no interior de São Paulo. Permaneceu no comando da cidade até 1933, realizando uma gestão muito elogiada. Calheiros instituiu o serviço de inspeção de higiene, inaugurou escolas, reformou estradas e conseguiu sanear as contas da prefeitura. Em 1934, Calheiros se mudou para Pernambuco, onde voltou a trabalhar como médico. Influenciado pelo forte clima de agitação operária em Pernambuco, Calheiros ingressou na Aliança Nacional Libertadora, onde teve contato com vários militantes comunistas. Em seguida, filiou-se ao PCB, destacando-se entre as lideranças regionais da agremiação.
Calheiros tinha uma boa reputação e era muito respeitado pelos jaboatonenses. O médico realizava atendimentos gratuitos para pessoas carentes, oferecia palestras sobre saúde e era muito engajado nas iniciativas em prol da melhoria dos serviços públicos. Sua imagem diferia bastante do estereótipo do “comunista arruaceiro” ventilado pela grande imprensa e pela propaganda anticomunista, o que facilitava sua aceitação nos setores médios. Ele era visto, portanto, como o candidato natural do PCB para eleição de 1947. Com a cassação do partido, o PCB concebeu um plano um tanto inusitado para viabilizar a candidatura: lançar o médico
comunista pelo Partido Social Democrático (PSD) — uma legenda conservadora, anticomunista, tradicionalmente vinculada aos interesses dos donos de usinas e engenhos no estado.
Embora sui generis, a coligação atendia os interesses pragmáticos dos dois partidos. O PSD amargava uma longa crise de popularidade na cidade e não possuía nenhum candidato viável. O PCB, por sua vez, tinha influência na classe trabalhadora e candidatos competitivos, mas estava impedido de concorrer. A aliança improvável funcionou. Manoel Calheiros foi eleito prefeito com 1.829 votos. Aníbal Ribeiro Varejão, líder do PSD na cidade,
foi eleito vice-prefeito. Outros quatro candidatos comunistas foram eleitos para a Câmara de Vereadores da cidade, também pelo PSD.
Porta-voz das oligarquias pernambucanas, a grande imprensa havia feito uma virulenta campanha anticomunista contra o candidato da coligação PCB/PSD, retratando-o como “inimigo de Deus, do Brasil e da família cristã”. Confirmada a vitória de Calheiros, os jornais reagiram com uma histeria quase cômica. Em um texto apresentado sob a manchete “Jaboatão nas mãos da Terceira Internacional”, o Diário de Pernambuco dizia que a cidade seria “a primeira comuna vermelha” do estado e que a bandeira nacional “daria lugar à flâmula sinistra da foice e do martelo”. Sucessivas matérias denunciavam um plano para implantar um “regime comunista soviético” no município, tocado pelos “assalariados de Stalin e seus aliados do PSD”.
Antes mesmo da eleição de Calheiros, Jaboatão já possuía a fama de ser um reduto “subversivo” em Pernambuco. O movimento sindical era bastante ativo na cidade, que concentrava um grande número de trabalhadores ferroviários, empregados pela companhia inglesa “Great Western of Brazil Railway”. O PCB exercia forte influência sobre o movimento operário local. A cidade também já havia servido de palco para uma insurreição revolucionária. Durante o Levante Comunista de 1935, militares ligados à Aliança Nacional Libertadora e ao PCB tomaram a Vila Militar do Socorro e outras guarnições do exército situadas em Jaboatão. A eleição de um prefeito comunista completava o quadro. Visando alarmar e mobilizar os setores conservadores, a imprensa passou a chamar a cidade de “Moscouzinho”, evocando sarcasticamente a capital soviética.
A oposição não vinha apenas da imprensa. Manoel Calheiros não teve um segundo de paz durante o seu governo. Ainda no início de sua gestão, durante uma viagem de emergência a Alagoas para resolver problemas
pessoais, Calheiros sofreu uma tentativa de golpe conduzida por vereadores de oposição, que tentaram cassar o seu mandato. Posteriormente, os quatro vereadores comunistas que haviam sido eleitos pelo PSD tiveram seus mandatos cassados, desintegrando a base de apoio do prefeito. Calheiros e seu vice tiveram desentendimentos já no início da gestão, que logo evoluíram para o rompimento da aliança com o PSD. Sem governabilidade, o prefeito ficou engessado e sofreu sucessivas tentativas de derrubada do seu mandato. Também teve de lidar com a forte resistência das oligarquias e com o boicote sistemático promovido do governo do estado, que cortou os investimentos e limitou as verbas repassadas ao município.
Manoel Calheiros conseguiu concluir o seu mandato, apesar do golpismo descarado da oposição. O boicote e a perda de apoio o impediram de concretizar suas promessas mais ambiciosas, mas o prefeito comunista conseguiu viabilizar ações importantes no município, em especial no campo da educação. Durante sua gestão, Jaboatão se tornou o segundo município com maior investimento percentual do orçamento na educação.
Calheiros reformou 22 escolas, construiu outras duas, viabilizou a construção de dois colégios estaduais e inaugurou oito salas de aula em zonas distantes. Também realizou importantes obras de infraestrutura urbana, ampliou a rede elétrica, melhorou a iluminação pública, construiu casas populares, inaugurou parques e praças e conduziu obras de saneamento básico.