Nas últimas semanas, países europeus como Holanda e Alemanha se recusaram a receber membros do governo de Recep Tayyip Erdogan, presidente da Turquia, que pretendiam fazer campanha junto à comunidade turca expatriada para a aprovação de mudanças constitucionais que serão votadas em um referendo em 16 de abril. Tais mudanças significam a ampliação dos poderes de Erdogan, com a extinção da figura de primeiro-ministro e a centralização da figura do presidente.
Erdogan e seus ministros têm respondido à rejeição do governo holandês e de governos regionais de Alemanha, Áustria e Suíça com duras declarações – invocando inclusive o passado nazista da região – e sanções diplomáticas. Ancara também ameaçou revogar o controverso acordo entre Turquia e União Europeia para que o país contenha o fluxo de refugiados em direção à Europa.
Para especialistas ouvidos por Opera Mundi, tais atitudes evidenciam tanto a escalada do autoritarismo na Turquia durante o governo de Erdogan como a histórica indisposição da Europa em relação ao país, cuja adesão à UE foi solicitada em 1987 e parece cada vez mais distante de se concretizar.
Entenda o caso
Em fevereiro, o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, assinou uma lei que implementa uma reforma constitucional para instaurar um sistema presidencialista no país. O projeto prevê que todas as atribuições do Executivo, atualmente nas mãos do primeiro-ministro, sejam concentradas no presidente, e precisa ser aprovado pela população em um referendo que será realizado no dia 16 de abril.
Desde o início de março, membros do governo turco têm visitado países europeus para liderar comícios para angariar votos da comunidade turca expatriada a favor da medida no referendo. Na Alemanha e na Áustria, várias cidades proibiram a realização destes eventos, alegando desde “razões de segurança pública” a “preocupações políticas”. Segundo os sites Middle East Monitor e Daily Sabah, membros do opositor CHP (Partido Republicano do Povo) realizaram comícios em prol do “não” no referendo na Alemanha sem serem incomodados pelas autoridades.
Na Holanda, o governo proibiu os comícios do governo da Turquia em todo o país, chegando a impedir a entrada da ministra Fatma Betul Sayan Kaya no consulado turco em Roterdã no último dia 12. Kaya foi escoltada pela polícia até a fronteira da Holanda com a Alemanha, e a polícia holandesa usou cassetetes, jatos d’água e cães para reprimir manifestantes que se reuniram diante da representação diplomática turca para protestar contra a deportação da ministra.
Agência Efe
Manifestantes pró-Erdogan em frente à embaixada holandesa em Ancara, na Turquia
Desde então, o presidente turco e seus ministros têm criticado duramente tanto a Holanda quanto a Alemanha, que rapidamente expressou apoio à decisão de Mark Rutte, primeiro-ministro holandês, de proibir os comícios do governo turco. Erdogan afirmou repetidas vezes que as atitudes das autoridades holandesas e alemãs são equivalentes a “práticas nazistas” e indicam que “o espírito do fascismo está desenfreado” na Europa.
Ancara vs. Amsterdã, Berlim e Bruxelas
Apoiadores de Erdogan veem o presidencialismo como uma garantia de estabilidade em tempos de crise e de fortalecimento diante da ameaça terrorista na região. Críticos, por sua vez, veem na reforma constitucional o ápice da guinada para o autoritarismo num país onde dezenas de milhares de pessoas, entre jornalistas, militares e funcionários públicos, foram detidas depois da tentativa fracassada de golpe militar, em julho do ano passado.
Esta é a visão de Mustafa Göktepe, presidente do Centro Cultural Brasil Turquia, ligado ao movimento Hizmet, que se opõe ao mandatário turco – e que foi classificado por ele como terrorista. “A estratégia de Erdogan nos últimos anos foi dividir a sociedade, polarizar, declarar inimigos, usando um tom autoritário”, disse em entrevista a Opera Mundi. “Se o referendo for aprovado, a Turquia perde todos os valores da democracia e se torna um país governado na mão de uma só pessoa e por tempo indeterminado.”
Agência Efe
Presidente turco Recep Tayyip Erdogan criticou Holanda e Alemanha por “práticas nazistas”
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O jornalista Mehmet Solmaz, correspondente em Bruxelas do jornal turco Daily Sabah, com linha editorial favorável a Erdogan, acredita que a decisão do governo da Holanda só se explica pela realização, dias depois, das eleições gerais no país. Para Solmaz, Rutte, o premiê holandês, “usou a retórica anti-Turquia para neutralizar a influência do islamofóbico [Geert] Wilders”, líder da extrema-direita que vinha ascendendo na preferência do eleitorado. Segundo o jornalista, a manobra “de fato funcionou”, já que uma pesquisa de boca de urna indicou que o endurecimento frente à Turquia rendeu votos a Rutte, cujo partido VVD venceu as eleições, enquanto Wilders e seu PVV ficaram em segundo lugar.
As duras declarações do presidente turco têm sido consideradas por governos e publicações ocidentais como “ataques” contra a Europa. Para Solmaz, tais frases estão relacionadas à “frustração sentida por Ancara” diante da rejeição europeia. “Uma pessoa que critica Erdogan deveria primeiro optar pela empatia e se perguntar: ‘O que nós faríamos se experimentássemos as mesmas reações da Europa durante vários anos?’”, sugere o jornalista.
Solmaz acredita que entre as razões para a frustração turca estão “a atitude de ‘dois pesos, duas medidas’ da Europa em relação ao terrorismo” e a “falta de solidariedade diante de uma tentativa de golpe sangrenta” no ano passado.
Já Göktepe, que considera os acontecimentos de 15 de julho de 2016 na Turquia um “autogolpe” arquitetado pelo governo para se fortalecer, acredita que “Erdogan briga com qualquer um que julgar necessário para ganhar simpatia de seus votantes”. “Esses episódios todos são para ganhar votos, e não prevejo nenhuma sanção que dure tanto tempo a ponto de prejudicar a economia turca”, afirmou em referência às ameaças do governo turco contra a Holanda e a União Europeia.
Crise deve garantir votos para Erdogan em referendo
Para o presidente do Centro Cultural Brasil Turquia, com a crise diplomática entre o país e a Europa, “única e exclusivamente quem ganha é Erdogan”, já que, em tese, a tensão com potências europeias pode se reverter em votos no referendo de 16 de abril a favor do fortalecimento do presidente na Turquia.
Agência Efe
Membros das forças especiais turcas na praça Taksim, em Istambul, onde um cartaz com a imagem de Erdogan diz: “vote sim, só o povo pode falar e tomar a decisão”
Solmaz concorda com este último ponto. “Se apoiadores do ‘não’ de partidos opositores e de grupos terroristas estão fazendo seus comícios livremente na Europa e são apoiados por estes países, aqueles que estão indecisos provavelmente irão às urnas para apoiar a emenda constitucional”, acredita.
O jornalista, entretanto, diz que “não há vencedores” na batalha de Ancara contra Amsterdã, Berlim e Bruxelas. “Vinte e oito países agredirem um país candidato à UE – que salvou o bloco da maior crise migratória de sua história desde a Segunda Guerra Mundial – não é justo e pode ser interpretado como um sinal de que a Europa perdeu o rumo e estará fora de controle em breve”, prevê Solmaz.