“A ditadura do Uruguai, proporcionalmente ao número de habitantes, teve recorde de presos políticos: um a cada 500 uruguaios foram presos”. A informação foi dado pelo ex-deputado do uruguaio Luis Puig nesta terça-feira (14/03) em Roma, capital da Itália, durante a sequência das audiências de julgamento do ex-coronel Jorge Nestor Troccoli pela morte e desaparecimento de militantes contrários à ditadura do país sul-americano (1973-1985).
Esse é o segundo processo contra o ex-oficial do serviço secreto da marinha uruguaia (Fusna) e oficial responsável à época pelos contatos com o órgão de coordenação de operações anti-subversivas (O.C.O.A). Troccoli está preso desde julho de 2021 em uma penitenciária italiana, após ter sido condenado à prisão perpétua pela morte e desaparecimento de outras dezenas de italianos ocorridos nos anos mais sangrentos dos governos repressivos sul-americanos. Além dele, mais treze pessoas foram sentenciadas.
Opera Mundi é o único veículo da imprensa brasileira que, desde 2015, acompanha os julgamentos na Itália dos crimes cometidos por torturadores do Cone sul no âmbito da Operação Condor.
O ex-coronel do Exército do Uruguai é julgado, neste caso em específico, por conta da morte e desaparecimento do casal ítalo-argentino Rafaela Filipazzi e José Agustín Potenza. Além deles, Troccoli também é acusado pelo desaparecimento da professora uruguaia Elena Quinteros, militante do Partido da Vitória do Povo (PVP).
Quinteros foi sequestrada em Montevidéu, capital do Uruguai, em 24 de junho de 1976 e levada para um centro de detenção clandestino. Quatro dias depois, ainda presa, ela disse aos agentes que entregaria um companheiro numa zona próxima à embaixada da Venezuela. A militante do PVP conseguiu escapar e entrar nos jardins da sede diplomática, onde pediu asilo. No entanto, oficiais uruguaios entraram na embaixada e a prenderam.
O episódio gerou uma ruptura das relações diplomáticas entre os dois países. Quinteros foi levada para o centro de tortura chamado “300 Carlos – o Inferno Grande” e nunca mais foi encontrada. Em uma ficha dos arquivos da Fusna, ela aparece como morta entre os dias 2 e 3 de novembro de 1976.
Nesta terça, os depoimentos tiveram como foco o caso de Quinteros e a reconstrução das circunstâncias do seu desaparecimento, tortura e assassinato.
A segunda audiência ouviu, além de Puig, mais duas testemunhas que tiveram contato com a professora. Os três depoimentos estavam programados, uma vez que a primeira sessão, em fevereiro deste ano, foi encerrada devido ao limite de horário, sem que houvesse tempo de ouvi-los.
Puig foi o primeiro a falar e descreveu à Corte a história do Partido da Vitória do Povo, uma sigla criada em 1975 por exilados uruguaios na Argentina que atuavam ao lado dos trabalhadores, sindicatos e movimentos dos estudantes.
Segundo ele, o partido agregava não somente a esquerda, mas todos os setores democráticos que resistiam à ditadura no país. “Um grande número de militantes políticos do PVP foi perseguido, preso e torturado pela ditadura uruguaia. Os órgãos responsáveis pela repressão eram o O.C.O.A, que foi criado em 1973, e o Fusna”, explicou Puig.
O ex-deputado confirmou que, em 1976, Troccoli fazia parte do serviço secreto da marinha. Ele confirmou tal afirmação ao reconhecer o agente da ditadura sentado na primeira fila, acompanhado de advogados.
De acordo com Puig, esta foi a primeira vez que ele viu o militar pessoalmente, mas recordava-se do rosto que tinha visto estampado nas capas de jornais uruguaios anos atrás, quando Troccoli lançou o livro A era de Leviatã, o método da fúria, no qual admite ter torturado opositores do regime.
“Podemos dizer que há uma data: 28 de março de 1976. A partir dela, a repressão ficou muito pesada e violenta. Essa data é marcada pela prisão, na Argentina, de três militantes do PVP que foram brutalmente torturados e posteriormente levados ao centro clandestino ‘300 Carlos, no Uruguai’”, contou.
Puig recordou que nesse período, em meados de junho e julho de 1976, foram presos diversos militantes, cerca de 26. De acordo com ele, a ditadura uruguaia usou a “mentira de uma suposta invasão” para justificar “publicamente aquelas prisões com o objetivo de convencer o Congresso norte-americano que no país não existia violação dos direitos humanos”.
Segundo Puig, 197 pessoas desapareceram durante o regime ditatorial no território uruguaio.
Janaina Cesar
Processo contra ex-coronel uruguaio ouviu três testemunhas que foram vítimas da ditadura do país
‘Fui encapuzada e espancada pelos agentes uruguaios’
“Bateram na porta, meu pai abriu e eu lembro dos militares, o comando era do capitão Jorge Silveira. Eles foram buscar meu cunhado e minha irmã, primeiro levaram ela e uma amiga. Em seguida, um policial pegou meu documento, vi ele falando com Silveira e depois voltou para me pegar. Lembro que nos carregaram em uma espécie de furgão. Depois de dois dias, fomos liberadas”, disse Mena Narducci, uma das testemunhas do processo, que conhecia Quinteros.
Com a voz trêmula e emocionada, Narducci contou sobre sua prisão: “com as mãos amarradas, ficamos por horas em pé em um cômodo, até que chegou um homem que me espancava e dizia ‘você é o número oito da escola’. Eu estava encapuzada durante todo o tempo, me espancaram e depois fui jogada em um colchão no chão. No momento que tiraram o capuz, vi o [coronel do exército uruguaio José Nino] Gavazzo. Naquela época, era comum aparecerem cadáveres boiando no Rio de la Plata. Gavazzo vestia uma jaqueta cinza e me dizia: ‘fala ou você vai acabar no Rio de la Plata'”.
Narducci era estudante e fazia parte do movimento estudantil. “Eu frequentava um sindicato no bairro onde eu morava e foi lá que conheci a Elena. Ela era professora”, disse.
Em sua fala, contou que Quinteros, assim que soube de sua prisão, “ligou todo o tempo para minha mãe, até que quem respondeu o telefone fui eu, porque tinha sido liberada”. De acordo com ela, foi a colega de militância quem incentivou Narducci a ir embora para a Argentina.
“Não tinha passaporte, somente a carteira de identidade. Quando cheguei em Buenos Aires encontrei o marido de Elena. No começo de junho já tinham sido feitos os primeiros sequestros na Argentina, mas ninguém sabia a dimensão do que aconteceria. Falei com a Elena por volta de 5 ou 6 junho. Quando ela entrou na embaixada da Venezuela, gritava: ‘sou Elena Quinteros, professora’. Naquela ocasião, a embaixada já abrigava quatro ou cinco pessoas”, contou.
A última a falar foi a uruguaia Elba Rama, que teve contato com Quinteros no período da repressão. Ela descreveu seu sequestro: foi presa na Argentina, em 1976, levada para um centro de detenção clandestino, local onde foi torturada, para depois ser transferida a um centro também clandestino no Uruguai.
“Não nos davam água e nem comida, porque poderia dar problemas caso fossem utilizar choque. Um dia nos levaram para outro centro, no subterrâneo da sede do Serviço de Informação e Defes (SID, o serviço secreto uruguaio). Éramos 22 pessoas”, disse.
Andrea Speranzoni, que representa a família Quinteros, perguntou durante o depoimento se ela conseguiria quantificar o tempo da tortura, quanto durava e quantas vezes no dia. “Não sei definir. Após uma sessão de tortura não tinha mais controle do corpo, era como um saco de batata, sem força”, declarou ela à audiência.
Rama contou que teve contato com Elena em 1974 e 1975. Segundo ela, as duas dividiram uma casa junto com outra mulher, todas eram procuradas pela polícia. “Participei com Quinteros da fundação do Partido da Vitória do Povo. Soube do sequestro pelo rádio. Quando ouvi a notícia de que uma mulher tinha sido sequestrada na embaixada, tive certeza que era ela. A confirmação veio depois”, afirmou à Corte.
O momento em que Quinteros tenta refúgio dentro da embaixada venezuelana na capital do Uruguai foi reconstruído no curta Elena, com direção de Oscar Estévez.