Um grupo de parentes e ex-presos políticos de ditaduras da América do Sul estiveram em Roma no começo de abril para depor em um processo que julga os crimes da Operação Condor. Entre uma audiência e outra, as testemunhas contra o ex-coronel uruguaio Jorge Nestor Troccoli encontraram o Papa Francisco.
O grupo era diversos e formado por uruguaias e paraguaias: Beatriz Filippazzi, Silvia Potenza, Lidia Cabrera e Sotero Franco foram testemunar no processo que julga a participação de Troccoli no assassinato do casal Raffaela Filippazzi e José Pontenza, além do desaparecimento da professora Elena Quinteros. Esses casos ocorreram na década de 70, quando o Cone Sul era governado por regimes autoritários e se alinhou na repressão contra opositores.
Opera Mundi é o único veículo da imprensa brasileira que, desde 2015, acompanha os julgamentos na Itália dos crimes cometidos por torturadores do Cone sul no âmbito da Operação Condor.
Para escapar do ambiente das audiências, as quatro testemunhas se uniram à freira Geneviève Jeanningros e, na manhã do dia 5 de abril, foram assistir a missa celebrada na praça São Pedro, no Vaticano. Opera Mundi os acompanhou nesse encontro de histórias de vidas entrelaçadas no passado e que, hoje, buscam justiça.
Beatriz e Silvia são filhas de Filippazzi e Pontenza, respectivamente. O casal foi sequestrado no Hotel Hermitage de Pocitos, em Montevidéu, no Uruguai, em maio de 1977, e levado para as instalações do serviço secreto da marinha uruguaia (Fusna). Em junho daquele ano, o casal foi transferido clandestinamente ao Paraguai, país no qual se tem o último registro deles.
Filippazzi e Pontenza ficaram desaparecidos até 2013, quando seus corpos foram encontrados em uma vala comum, em uma propriedade da Polícia Nacional do Paraguai, na capital Assunção.
Já Lidia e o marido Sotero, ex-membros do Partido Comunista Paraguaio, viviam exilados na Argentina por serem considerados opositores políticos da ditadura de Alfredo Stroessner. Os dois foram sequestrados em Buenos Aires e levados para uma prisão clandestina em Assunção, a mesma onde estavam Filippazzi e Pontenza.
A freira Genevieve há anos mora em um pequeno trailer com a comunidade Sinti, em Roma. Sua tia – também freira – morreu nos voos da morte a mando do general argentino Emílio Massera. Além da tia Alice Dumon e da freira Lèonie Duquet, o regime matou todo o grupo que frequentava a igreja de Santa Cruz, de Buenos Aires, onde se reuniam clandestinamente as fundadoras da organização Mães da Praça de Maio.
O encontro com Francisco
Genevieve foi a primeira a cumprimentar o Papa Francisco, avisando que as pessoas que estavam com ela eram parentes de desaparecidos das ditaduras da América do Sul. O pontífice fez um gesto de acordo com a cabeça e seguiu dando as mãos às pessoas.
Assim como elas, o argentino Francisco também viveu a época da ditadura militar que ensanguentou o país. Ele havia conhecido, inclusive, uma amiga de Lidia.
Sentada ao lado de Lidia estava Beatriz, filha de Filippazzi, que não conteve a emoção e chorou no ombro de Francisco. O papa, calmamente, escutou seu pranto e a tranquilizou.
O encontro foi breve, marcado por poucas palavras, mas gestos afetuosos. Beatriz afirmou à reportagem que o episódio “fechou um ciclo de vida”.
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Bastidores das audiências no tribunal de Roma
Beatriz e Sílvia contaram à Corte, presidida pela juíza Antonella Capri, como foi viver sem a presença dos pais. “Este processo mostra que a Justiça existe, que está presente e isso me deixa muito feliz porque sinto que nem tudo está perdido”, disse Beatriz que reconstruiu a vida política da mãe, o desaparecimento e a busca pela verdade ao lado da avó.
Beatriz, que tem cinco filhos e um neto, disse ter passado uma vida difícil sem a mãe: “cresci sem saber o que tinha acontecido com ela, foi traumático. Só em 2013 ela deixou de ser uma desaparecida. Encontraram o seu corpo junto com o de José e outros numa vala comum em Assunção”, declarou.
Ao final do relato, a uruguaia pediu para conversar com o acusado privadamente. Ela não quis detalhar o que foi discutido, somente afirmou a Opera Mundi que, diante dela, “viu o diabo em pele de cordeiro”.
Beatriz chegou a conhecer Potenza, pai de Sílvia, quando era pequena. Trabalhando na área do judiciário do Uruguai, ela conseguiu localizar algumas pessoas das quais havia somente o nome. A filha do companheiro de sua mãe era uma delas. Após se encontrarem, as duas não mais se separaram e se uniram na luta pela verdade e justiça.
Foi através de seu trabalho que Beatriz pôde encontrar também o casal de paraguaios Lidia Cabrera e Sotero Franco. Únicos sobreviventes do centro de detenção e tortura do Departamento de Investigações da polícia paraguaia, último lugar onde foram vistos com vida Filippazzi e Potenza, o casal vive na Suíça como exilados políticos.
Durante seu depoimento, Lidia disse que encontrou Potenza na prisão e também afirmou ter visto Filippazzi tomando banho de sol e ter ouvido sua voz durante as sessões de tortura. O casal de paraguaios só se salvou porque a mãe de Lidia havia feito uma queixa à Cruz Vermelha Internacional. Eles foram transferidos no dia 2 de dezembro de 1977 para a prisão Emboscada, ainda no Paraguai.
Os militares do Departamento, conscientes de que a Cruz Vermelha faria uma inspeção no local, libertaram alguns prisioneiros, transferiram outros e mataram os demais, incluindo Filippazzi e Potenza.
Beatriz, que estava presente no tribunal para ouvir o testemunho dos paraguaios, sabia que todos haviam sido torturados, mas nunca quis saber os detalhes, pois tinha medo de sofrer mais ainda. Ela ouviu pela primeira vez as atrocidades cometidas contra a mãe e os outros presos.
A próxima audiência está marcada para maio, quando serão ouvidas três testemunhas.