A Justiça italiana ouviu na terça-feira (14/02) as três primeiras testemunhas do novo processo que tramita na Terceira Corte de Assis do Tribunal de Roma contra Jorge Nestor Troccoli.
O caso agora julga a participação do ex-militar uruguaio no assassinato e desaparecimento de Raffaela Filipazzi, José Potenza e Elena Quinteros, nos anos entre 1970 e 1980, crimes cometidos no âmbito da Operação Condor – uma rede de colaboração entre as ditaduras do Cone Sul para aniquilar opositores políticos aos regimes.
Esse é o segundo processo contra o ex-oficial do serviço secreto da marinha uruguaia (Fusna), e oficial responsável pelos contatos com o órgão de coordenação de operações anti-subversivas (O.C.O.A).
Troccoli está preso desde julho de 2021 em uma penitenciária italiana, após ter sido condenado à prisão perpétua pela morte e desaparecimento de outras dezenas de italianos ocorridos nos anos mais sangrentos dos governos repressivos sul-americanos. Além dele, mais 13 pessoas foram sentenciadas.
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O julgamento
Sentado na primeira fila ao lado de seu advogado, o militar de 81 anos ouviu por horas os depoimentos da historiadora Francesca Lessa, autora do livro O processo Condor, a repressão transnacional e os direitos humanos na América do Sul (Editora Qudu); o militante do Partido Vitória do Povo e ex deputado do Uruguai Luigi Puig, e a historiadora uruguaia Fabiana Larrobla.
Lessa foi a primeira da lista para depor, e sua exposição durou cerca de quatro horas. Cinco minutos após o início da sua fala, Marco Bastoni, advogado de Troccoli, interferiu dizendo não ser necessário ouvi-la pois, pra ele, o “contexto histórico já era conhecido”.
A intervenção foi prontamente rebatida pela juíza, Antonella Capri, que, diante do colégio de 12 juízes, argumentou que a lista de testemunhas era de seu conhecimento, logo não era o momento de questionar o depoimento de Lessa.
No depoimento, Lessa explicou o que foi a Operação Condor, contextualizando o período histórico, detalhando as ditaduras do Cone Sul e o clima de terrorismo de Estado criado por esses países. “As ações dos governos eram muito violentas e tinham a finalidade de aniquilar a oposição política. Eram cometidos contra pessoas que as ditaturas tinham a obrigação de proteger”, disse a historiadora italiana.
Alguns documentos desarquivados em 2019 nos Estados Unidos, que Lessa apresentou, iluminam certos aspectos da Operação Condor: “a Condor será dividida burocraticamente em dois grupos principais: Condortel, que vai se dedicar a troca de comunicação e informação, e Condoreje, que será responsável pela parte operativa. Cada um dos seis países membros (da operação) enviará dois oficiais a Buenos Aires com a finalidade de ocupar os respectivos cargos de comando e coordenação. Este último terá sede em Santiago do Chile”.
Um documento norte-americano falava sobre a criação de um grupo especial composto de agentes dos países membros que atuavam em território extra-condor para eliminar dissidentes políticos.
Já entrando no tópico do comando militar uruguaio, Lessa explicou o que era a seção S2 e S3 da Fusna. Segundo a especialista, a S2 era o departamento de inteligência, sendo a S3 o comando de operações.
Em 19 de dezembro de 1975, Troccoli foi enviado à S3, permanecendo nela até 6 de fevereiro de 1976, quando o uruguaio assumiu o comando da S2. Dois meses depois, em 1 de abril, o ex-militar assumiu também o cargo de oficial de ligação da Marinha com a O.C.O.A. – organismo responsável pela coordenação das operações anti-subversivas no Uruguai.
Essas informações são importantes para entender a participação de Troccoli no regime repressivo do país sul-americano e a ligação que teve com os crimes pelos quais está sendo processado.
Após explicar a carreira militar de Troccoli, Lessa reconstruiu a operação clandestina que culminou no sequestro da professora Elena Quinteros (uma das vítimas) e afirmou ter entregue ao procurador Amélio Camelio Erminio — que conduziu o interrogatório — um documento em que o ex-oficial da Fusna Alex Lebel identifica Troccoli como um dos responsáveis pela operação que ocorreu em junho de 1976.
Janaina Cesar
Caso agora julga a participação do ex-militar uruguaio no assassinato e desaparecimento de Filipazzi, Potenza e Quinteros
Os gritos de tortura da professora Quinteros
Ao recorrer dos depoimentos, a uruguaia Fabiana Larrobla endossou o depoimento de Lessa, praticamente repetindo as mesmas questões sobre a carreira de Troccoli, e também apresentou artigos publicados pela imprensa uruguaia que citam o réu como um dos responsáveis pelo sequestro de Quinteros.
Quando Lorrobla começou a falar sobre o testemunho de Nilka Regio de Gutiérrez, ex-presa política, dado à Comissão de Inquérito Parlamentar do Uruguai em 28 de março de 1985, a defesa de Troccoli argumentou que o documento não deveria ser depositado, visto que era uma prova nova contra seu assistido.
O caso de Gutiérrez ocorreu em 1976, quando a militante declarou ter sido presa e levada à prisão clandestina “300 Carlos – o Inferno Grande”, no qual viu Quinteros e a ouviu sendo torturada.
O documento que traz o depoimento de Gutiérrez faz parte de ficha pessoal de Quinteros, publicada no site da Secretaria dos Direitos Humanos do Uruguai. “Cada desaparecido tem uma ficha onde constam todas as informações referentes àquela pessoa”, comentou a historiadora Lorrobla.
Enquanto Larrobla testemunhava, Troccoli falava a baixa voz, sozinho: “mas o que está dizendo?”
Após cinco horas depondo, já no final de sua fala, respondendo ao advogado Andrea Speranzoni, que representa a família Quinteros, sobre as técnicas de tortura aplicadas em presos políticos, a uruguaia citou o “submarino”: técnica que consiste em colocar o prisioneiro em um recipiente com água e fezes deixando somente a cabeça de fora.
Outra versão era o “submarino seco”, que colocavam um saco plástico na cabeça do preso até quase asfixiá-lo, ou ainda penduravam os presos de forma que a ponta dos pés tocassem o chão molhado, para depois dar choque.
Às 19h30 (horário da Itália), a Corte ainda deveria ouvir o ex-deputado do uruguaio Luigi Puig. No entanto, por conta da hora, a sua deposição foi remarcada para o dia 14 de março, data da próxima audiência.
Além do procurador Amélio Camelio Erminio e da defesa de Troccoli, estavam presentes na audiência o representante do Estado italiano Luca Ventrella e os advogados Andrea Speranzoni, Arturo Salerni, Mario Antonio Angelelli, que defendem as famílias das vítimas. Assim como a advogada Silvia Calderoni, que representa o Estado da Argentina.
Quem eram as vítimas
Para o procurador Erminio, Troccoli teria participado da morte de Filipazzi (italiana), Potenza (argentino) e Quinteros (uruguaia), “com a agravante de ter cometido os atos com premeditação, usando tortura e agindo com crueldade, abuso de poder e meios insidiosos”.
Filipazzi e o marido Potenza foram sequestrados em Montevidéu, capital uruguaia, em 27 de maio de 1977, no Hotel Hermitage. De lá foram levados para o centro clandestino do Fusna.
Em 8 de junho do mesmo ano foram entregues aos agentes da repressão do ditador paraguaio Alfredo Stroessner e transferidos para Assunção, capital do Paraguai, no voo 303 das Linhas Aéreas Paraguaias. Chegando na cidade, foram registrados como “detidos sem entrada” e assassinados.
Permaneceram na lista dos desaparecidos até 2016, ano em que seus restos mortais foram identificados em uma vala comum localizada em uma propriedade do Grupo Especializado da Polícia Paraguaia.
Já Quinteros foi sequestrada em sua casa durante uma operação conjunta entre o Fusna e a O.C.O.A. Em 28 de junho de 1977, quatro dias após o sequestro, ela fingiu que entregaria um companheiro numa zona próxima à embaixada da Venezuela no Uruguai.
A militante do Partido Vitória do Povo conseguiu escapar e entrar nos jardins da sede diplomática, onde pediu asilo, mas oficiais da O.C.O.A entraram na embaixada e a prenderam. O fato gerou uma ruptura das relações diplomáticas entre Mondevideu e Caracas. Quinteros foi levada para o centro de tortura “300 Carlos – o Inferno Grande” e nunca mais foi encontrada. Em uma ficha dos arquivos do Fusna ela aparece como morta entre os dias 2 e 3 de novembro de 1976.