A Terceira Corte de Assis do Tribunal de Roma, na Itália, deu continuidade às sessões de julgamento contra o ex-militar uruguaio Jorge Néstor Troccoli.
Na quinta-feira passada (08/02), o órgão ouviu dois depoentes: José Pedro Carlos Filipovich e Martha Graciela Popelka Cámpora, ambos foram vítimas da ditadura do país sul-americano.
Troccoli já foi condenado em julho de 2021 à prisão perpétua, pela morte de cidadãos italianos e uruguaios ocorridas nos Anos 70 e 80, sob o manto da Operação Condor, que foi implantada na América do Sul durante os regimes militares daquele período.
Agora, o ex-militar é acusado pela morte e desaparecimentos do casal ítalo-argentino Rafaela Filipazzi e José Agustín Potenza e da professora uruguaia Elena Quinteros, militante do Partido Vitória Popular (PVP).
Opera Mundi é o único veículo da imprensa brasileira que, desde 2015, acompanha os julgamentos na Itália dos crimes cometidos por torturadores do Cone sul no âmbito da Operação Condor.
Na audiência em questão, as testemunhas revelaram detalhes sobre os métodos de tortura utilizados no centro clandestino de detenção conhecido como “300 Carlos – o Inferno Grande”, local onde homens e mulheres eram mantidos separados e isolados.
O uruguaio José Pedro Carlos Filipovich enfatizou a atmosfera de terror e a falta de distinção entre torturadores e investigadores. Todos, segundo ele, agiam para extrair informações e levar as pessoas a uma situação limite.
Militante do Partido do Povo durante os anos de ditadura, Filipovich também foi preso e torturado no centro clandestino. Emocionado, confirmou ter sido torturado, mas evitou entrar em detalhes sobre os abusos sofridos.
Já Martha Graciela Popelka Cámpora contou que as torturas aconteciam todos os dias, principalmente à noite. “Quando ligavam o rádio com volume alto era porque estavam interrogando e torturando alguém. Eles nos afogavam, nos penduravam com as mãos amarradas e depois tinha a tortura psicológica”, disse.
Durante a sessão, Cámpora disse que esteve presa com Quinteros. De acordo com o relato, ela afirmou que a militante do Partido Vitória Popular era amiga do seu marido e reconheceu sua voz: “a gente deitava e conseguia ver pela fresta que a venda que cobria nossos olhos permitia. Era pouco espaço, mas dava pra ver alguma coisa. Foi assim que reconheci Elena”, contou.
Os dois depoentes revelaram que quando entravam no “300 Carlos” recebiam um número de identificação que era usado também na hora da tortura. “A gente sabia que alguém seria torturada porque chamavam pelo número”, disse Campora.
Janaina César
Troccoli já foi condenado em julho de 2021 à prisão perpétua pela morte de cidadãos italianos e uruguaios
Ela ainda detalhou que conversas entre as prisioneiras eram proibidas e, quando alguma delas era pega falando, era punida. Cámpora passou nove dias em pé por punição. Por conta disso, as detentas encontraram outros mecanismos para se comunicarem. “Quando a gente estava em fila para ir ao banheiro, apesar de estarmos sempre vendadas, conseguíamos escrever com a ponta dos dedos atrás das costas da companheira”, contou a uruguaia.
Interrogatório
Na sessão da quinta, Cámpora confirmou o papel de Troccoli nas torturas. Ao responder o advogado do ex-militar, Francesco Guzzo, a uruguaia disse que a pergunta sobre se ela reconhece o réu teria que ser contrária.
“Não me pergunte se eu conheço Troccoli como um dos torturadores, eu estava com os olhos vendados e não conseguia enxergar. Em vez disso, pergunte a ele se me conhece, pois não estava com os olhos vendados e conseguia ver exatamente o rosto de quem ele estava torturando”, argumentou a testemunha.
Em certo momento, Guzzo insistiu em perguntar se Cámpora o conhecia ou não, se o tinha visto ou reconhecido durante o período em que estava presa. “Responda, senhora: sim ou não, sim ou não. Responda somente sim ou não”, acrescentou.
Visivelmente assustada pelo tom agressivo, ela disse que aquilo parecia um interrogatório sob tortura: “eram os torturadores que faziam esse tipo de pergunta e exigiam esse tipo de resposta: sim ou não , sim ou não”, declarou a depoente.
As vítimas
Elena Quinteros foi sequestrada em Montevidéu, capital do Uruguai, em 24 de junho de 1976 e levada para um centro de detenção clandestino. Em 28 de junho, ela fingiu que entregaria um companheiro numa zona próxima à embaixada da Venezuela. A militante conseguiu escapar e entrar nos jardins da sede diplomática, onde pediu asilo, mas oficiais uruguaios entraram no local e a prenderam.
O fato gerou uma ruptura das relações diplomáticas entre os dois países. Quinteros era militante do Partido Vitória do Povo (PVP) e foi levada ao centro de tortura “300 Carlos”. Depois disso, nunca mais foi encontrada. Em uma ficha dos arquivos do Serviço Secreto da Marinha Uruguaia (Fusna), ela aparece como morta entre os dias 2 e 3 de novembro de 1976.
O casal Filipazzi e Potenza foram sequestrados em Montevidéu em 27 de maio de 1977 no Hotel Hermitage e entregues à unidade S2 dos Fuzileiros Navais. Tempos depois, foram transportados de avião para Assunção, no Paraguai, e recebidos por agentes da ditadura de Alfredo Stroessner.
Segundo as investigações, eles foram assassinados no Paraguai, onde seus restos mortais foram encontrados em março de 2013.