Os argentinos Eva Lerouc e Alberto Rivas depuseram no final de novembro no processo aberto pelo Ministério Público em Roma que apura crimes cometidos pelo ex-militar Carlos Luis Malatto durante a ditadura militar de Jorge Videla (1976-1983), na Argentina. Durante o depoimento, reviveram os momentos de terror que testemunharam na período repressivo.
Malatto é acusado de assassinatos e desaparecimentos forçados na Argentina, mas não foi julgado em seu país porque fugiu para a Itália em 2011. Três anos mais tarde, a justiça italiana negou sua extradição e, desde então, vive como homem livre.
Em 2015, porém, o Ministério da Justiça aprovou a abertura do inquérito e o MP romano segue investigando o envolvimento do ex-tenente argentino nos assassinatos de Angel José Alberto Carvajal, funcionário do Partido Comunista da Argentina; de Juan Carlos Cámpora, reitor da Universidade de San Juan; do soldado Jorge Bonil; e da modelo franco-argentina Marie Anne Eriz. Ela era militante do movimento Montoneros, foi sequestrada em 15 de outubro de 1976 por três homens em frente a uma loja de bicicletas e nunca mais foi vista.
O passado sempre volta
Só que hoje, 43 anos após o fato, o argentino Alberto Rivas, 69 anos, decidiu falar e veio até a Roma para testemunhar o que viu. “Não foi pouca coisa”, garante. Enquanto a argentina Lerouc prestava depoimento ao procurador Francesco Dall’Olio, Rivas conversou com a reportagem de Opera Mundi. Com os olhos marejados, disse não ter razão para atravessar o mundo e vir contar mentiras. “O que vi foram coisas horríveis, sonhava com isso todos os dias, precisava me libertar”, disse.
Rivas veio testemunhar sobre os casos Carvajal e Erize. Começou falando sobre o sequestro da modelo francesa. “Naquele dia, fui à oficina porque minha bicicleta havia quebrado. Mas quando entrei, uns homens me ordenaram deitar no chão. Eu levantei os olhos e vi que estavam segurando uma mulher e a estavam levando para fora da oficina. Eu vi o tenente Malatto entre aqueles homens”, disse o argentino.
Duas semanas depois, Rivas foi preso por roubo e levado para a prisão de Chimbas, que fica na província de San Juan. “Lá estavam vários presos políticos, mas eu era um ladrão comum, eles não imaginavam que eu pudesse ver coisas e lembrar do que vi. Eu trabalhava na limpeza e uma das tarefas era a limpar a sala de torturas”, disse. “Aquelas paredes e o chão manchados de sangue de gente torturada ali dentro nunca vão sair da minha cabeça.”
Foi o fato de trabalhar na prisão que permitiu que Rivas presenciasse uma das cenas que mais o marcou. “Vi o que fizeram com o corpo de Angel José Alberto Carvajal”, conta, chorando. “Para justificarem sua morte, inventaram que ele se suicidou, mas não foi isso o que aconteceu. Vi dois soldados arrastarem o corpo dele, enfiarem uma corda em seu pescoço e pendurá-lo várias vezes. Eles o mataram e o depois inventaram o suicídio.”.
Carvajal foi sequestrado dia 29 de julho e 1977 e levado para Chimbas, onde morreu em 18 de agosto do mesmo ano. Anos mais tarde, Rivas encontrou um parente de Carvajal e o abraçou, pedindo desculpas. Foi a partir desse momento que ele decidu que era hora de contar o que havia visto. E, desde 2014, faz isso. Por ter colaborado com procuradores em processos argentinos, viveu dois anos com proteção policial e teve sua casa alvo de uma rajada de tiros em 2014. “Mas as pessoas têm direito de saber a verdade”, diz.
Uma infância que não existiu
Já Eva Lerouc perdeu os pais durante o regime de Videla. Foram sequestrados em 1976, Armando Lerouc foi morto, e Elida Saroff desapareceu após o seqüestro.
“Além de tirarem meus pais de mim, me arrancaram a memória de uma infância que não tive”, contou. Ela tinha somente 2 anos, e seu irmão, 7 meses, quando tudo aconteceu. “Meus pais tinham uma tipografia e, quando foram presos, o regime fez uma publicidade dizendo que haviam prendido os tipógrafos dos Montoneros”, disse a argentina.
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Monumento lembra massacre de Margarita Belén, ocorrido durante ditadura argentina; ex-militares fugiram para Itália
O caso de seus pais amplia o número de casos de assassinatos pelos quais Malatto é investigado na Itália. ‘Se eu vim para a Itália, 40 anos depois do horror dos desaparecidos, não é por espírito de vingança: isso não existe mais. Ao ex-tenente Malatto, que zomba da magistratura argentina, eu diria a ele para dizer tudo o que sabe sobre o fim de nossos entes queridos”.
Os argentinos foram acompanhados no MP por Jorge Ithurburu, fundador da associação 24 de Marzo, entidade que apura várias denúncias contra ex-militares sul americanos por crimes cometidos durante as ditaduras.
A vida de Malatto na Itália
Desde que chegou ao país, Malatto teve de forma direta ou indireta proteção da Igreja. Em seus primeiros anos no país, encontrou abrigo em Aquila, na Confraternidade da Misericórdia. Em agosto de 2014, se mudou para Gênova, onde viveu em uma casa paroquial, a convite de dois padres argentinos. Em seguida, mudou-se para Enna, um pequeno burgo medieval: lá, não era mais hóspede na Igreja, mas morava em uma casa que ficava atrás da igreja principal. Seu atual refúgio, porém, é um resort de luxo que fica em Furnari, região de Messina, na Sicília.
“É como uma contradição histórica”, disse Lerouc a Opera Mundi. “Cresci ouvindo dizer que os desaparecidos estariam na Europa ou alguma localidade ao mar. Olha o acaso da vida: quem está vivendo na praia são eles, os responsáveis pelo desaparecimento de tanta gente.”
Como revelou Opera Mundi em 2015, além de Malatto, vivem livremente na Itália outros dois homens acusados na Argentina e no Uruguai de envolvimento com tortura, morte e desaparecimento de prisioneiros políticos ocorridos nos anos 70 e 80. Assim como o ex-militar argentino, eles também têm dupla cidadania e, anos atrás, tiveram as extradições negadas a seus países pela Justiça italiana.
Porém, essa mesma Justiça que negou a extradição foi a responsável pela condenação de um deles: Nestor Troccoli, militar responsável pelo Corpo de Fuzileiros Navais do Uruguai (Fusna). Condenado com outros 23 ex-agentes de ditaduras do Cone Sul à prisão perpétua por crimes cometidos contra cidadãos italianos residentes no exterior durante a Operação Condor, teve o passaporte retido e está proibido de deixar a Itália.
Além disso, o MP de Roma abriu duas novas investigações contra o uruguaio: uma sobre o sequestro, assassinato e desaparecimento da professora uruguaia Elena Quinteros, sequestrada na embaixada da Venezuela, em Montevidéu, em 28 de junho de 1976, e o sequestro e assassinato da italiana Rafaela Filipazzi e seu marido, José Agustín Potenza, em 27 de maio de 77, no hotel Hermitage, em Montevidéu. Os restos mortais do casal foram encontrados em Assunção, no Paraguai.
Malatto é investigado, Troccoli, condenado à prisão perpétua e investigado por outros crimes. Do trio de torturadores, somente Franco Reverberi Boschi ainda não enfrentou a Justiça.
Don Franco, como é conhecido em Sorbolo, cidade onde vive na Itália, é um ex-capelão militar argentino acusado de participação em sessões de tortura em uma prisão clandestina localizada na província de San Rafael, na Argentina. Cinco testemunhas descreveram com detalhes as torturas sofridas e confirmaram a presença de Franco. Um deles, Roberto Flores, disse que o sacerdote não participou da violência diretamente, mas de maneira passiva, com a Bíblia na mão.
Outra testemunha, Mario Bracamonte, disse tê-lo visto quatro vezes. “Lembro-me de uma tarde, fomos submetidos a uma surra particularmente violenta. O chão da sala estava vermelho de sangue. Don Franco ordenou que limpássemos com nossos corpos. Era inverno, a temperatura era de 10 graus abaixo de zero.” Uma noite, Bracamonte foi torturado por quatro horas, tendo a cabeça enfiada em uma banheira com água repetidas vezes. Num momento, viu Franco, que lhe disse: “O que você está olhando? Cão!”