“A cadela do fascismo está sempre no cio.” O famoso adágio foi inspirado no texto de encerramento da peça “A Resistível Ascensão de Arturo Ui”, do dramaturgo alemão Bertolt Brecht — uma paródia crítica sobre a ascensão do nazismo na Alemanha. Embora não seja uma citação exata, a frase sintetiza com grande vigor o argumento da perenidade das dinâmicas sociais que alimentam o ideário fascista. Onde houver uma investida da extrema-direita, sempre haverá uma cadela fascista no cio. No caso da Venezuela, há uma matilha inteira.
Desde que chegou ao poder, Nicolás Maduro já enfrentou inúmeras ofensivas golpistas conduzidas pela extrema-direita e por setores reacionários das Forças Armadas. Presidente interino da Venezuela desde a morte de Hugo Chávez, Maduro foi eleito para cumprir um mandato integral em 14 de abril de 2013, conquistando 50,61% dos votos. Seu principal adversário no pleito foi Henrique Capriles, do partido liberal Primero Justicia, governador do estado de Miranda.
A eleição foi a mais apertada da história da Venezuela. Capriles obteve a preferência de 49,12% dos eleitores — uma diferença de menos de 240 mil votos. Foi o suficiente para que a direita venezuelana vislumbrasse uma oportunidade de levar o pleito no tapetão. Surgiu assim a primeira de uma série de tentativas de golpe, que detalharemos a seguir:
A Saída (2013-2014)
Imediatamente após o anúncio oficial de que Maduro vencera a disputa eleitoral de 2013, Capriles acusou o pleito de ter sido fraudado. O candidato derrotado afirmou possuir evidências concretas de que o resultado havia sido manipulado, mas jamais apresentou nenhuma prova.
A eleição foi acompanhada por mais de 170 observadores internacionais — e todos referendaram o resultado. Ainda assim, veículos de imprensa da Venezuela e de todo o mundo deram amplo destaque às acusações. Capriles exigiu a recontagem de votos, cédula a cédula — um procedimento que não é previsto no código eleitoral venezuelano. Seguindo a legislação, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) realizou a auditoria de 54% dos votos.
A oposição, entretanto, se negou a enviar um representante para acompanhar o procedimento e seguiu alegando fraude. Capriles impetrou um recurso exigindo a anulação do pleito, mas o pedido foi rejeitado pelo Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) por falta de provas.
A oposição passou a usar um discurso cada vez mais virulento e inflamado e exortou a população a sair às ruas para protestar contra a “fraude eleitoral”. Além de Capriles, o movimento recebeu o apoio das principais lideranças da extrema-direita venezuelana, incluindo María Corina Machado e Leopoldo López — ambos partícipes do golpe de 2002, que aboliu a Constituição aprovada pelo voto popular e tentou afastar Hugo Chávez da presidência.
O movimento recebeu o nome de “La Salida”, evocando a afirmação de que “a saída” para o “problema venezuelano” estava na organização de protestos massivos. Os eleitores da oposição responderam ao chamado, promovendo uma série de motins violentos por todo o país — as chamadas “guarimbas”. Os manifestantes apedrejaram, saquearam e incendiaram instalações públicas e privadas, atacaram apoiadores de Maduro e bloquearam ruas e avenidas. Os protestos se arrastaram por vários meses e deixaram um saldo de 43 mortos e mais de 500 feridos. Responsabilizado pelos motins, Leopoldo López permaneceu detido em uma prisão militar por três anos.
O Golpe Azul e A Espada de Deus (2015-2016)
Em fevereiro de 2015, o governo de Nicolás Maduro anunciou que havia debelado uma conspiração golpista de burocratas e oficiais da Aeronáutica. A operação — apelidada “Golpe Azul”, em referência aos uniformes da Força Aérea Venezuelana — previa o sequestro de aeronaves militares e uma série de ataques aéreos contra alvos do governo, incluindo o Palácio de Miraflores (residência oficial do presidente), o Ministério da Defesa, o Ministério Público, o Tribunal Supremo de Justiça e a sede da Telesur, entre outros prédios públicos.
O plano foi descoberto pelo Serviço Nacional de Inteligência, que afirmou ter identificado indícios de envolvimento da CIA na operação. Oito pessoas foram presas — incluindo o prefeito de Caracas, Antonio Ledezma — e computadores com documentos e mapas relacionados ao plano foram apreendidos.
No primeiro trimestre de 2016, o governo venezuelano desarticulou outra ofensiva golpista dos militares— a “Operação Espada de Deus”. O plano foi idealizado pelos generais Ángel Vivas e Raúl Baduel e tinha como objetivo assassinar Nicolás Maduro. A desarticulação foi possibilitada por uma delação e posterior infiltração de agentes de segurança.
Escudo Zamorano e Operação David (2017)
Em abril de 2017, o governo Maduro anunciou a neutralização da “Operação Escudo Zamorano”. A operação havia sido arquitetada por Eduardo Ventacourt e Johan Peña, dois ex-funcionários da Direção dos Serviços de Inteligência e de Prevenção, e pelo coronel do exército Zomacal Hernández. Os agentes haviam subtraído 32 quilos de explosivos C4 dos arsenais públicos e pretendiam utilizá-los em atentados contra instalações do governo. As investigações apontaram o envolvimento de três deputados de extrema-direita na operação: Roberto Enríquez, Oswaldo Álvarez Paz e Julio Borges.
Alguns meses depois, em agosto de 2017, ocorreu outro grande roubo de armas de um arsenal público — a “Operação David”. A ofensiva foi comandada por Juan Caguaripano, capitão da Guarda Nacional Bolivariana (GNB) e líder de um grupo de insurgentes. Os sublevados atacaram o Forte de Paramacay e exortaram os militares a se juntarem ao movimento golpista para depor o governo venezuelano. A revolta foi controlada pelos militares legalistas, mas um grupo conseguiu fugir levando mais de 500 fuzis AK-103 e centenas de lançadores de granadas, baionetas e pistolas.
Óscar Pérez e a Operação Gênesis (2017-2018)
Em 27 de junho de 2017, um policial venezuelano chamado Óscar Pérez virou notícia no mundo inteiro. Acompanhado de um grupo de militares sublevados, Pérez sequestrou um helicóptero da polícia e voou até o centro de Caracas, onde disparou tiros e artefatos explosivos contra a sede do Tribunal Supremo de Justiça.
Maduro atribuiu o ataque à ação de militares golpistas, mas a oposição afirmou que se tratava de uma encenação feita pelo próprio governo em busca de apoio popular. No mesmo dia, entretanto, Pérez publicou vídeos nas redes sociais assumindo a autoria do atentado e esclarecendo se tratar uma ação contra o governo venezuelano. Pérez também apelou ao povo que se unisse pela derrubada de Nicolás Maduro.
O governo lançou uma vasta operação de busca, mobilizando forças de segurança para rastrear e prender os autores do ataque. A imprensa, por sua vez, romantizou o ocorrido, retratando Pérez com ares de “herói da resistência” e o atentado terrorista como um ousado “ato de rebelião contra a tirania”.
Pérez ainda protagonizaria a chamada “Operação Gênesis” — um ataque de mercenários a um posto da Guarda Nacional Bolivariana em Miranda, que resultou no roubo de 26 fuzis Kalashnikov, 3.240 munições e dezenas de pistolas e granadas. Pérez foi morto em janeiro de 2018, durante uma operação lançada pelo governo venezuelano para capturar o terrorista. A operação rendeu inúmeras críticas ao governo venezuelano — e até mesmo ações protocoladas junto ao Tribunal de Haia. Pérez foi celebrado com um mártir por figuras de extrema-direita, incluindo María Corina Machado, Jair Bolsonaro e Marco Rubio.
Conspirações de 2018
Maduro foi alvo de mais um atentado em 4 de agosto de 2018. Durante uma celebração de aniversário da Guarda Nacional Bolivariana, drones com explosivos foram direcionados até o local onde estavam o presidente, seus ministros e o alto comando militar. O ataque foi neutralizado pelo exército e dois homens foram presos: Argenis Ruiz, piloto do drone, e Juan Carlos Monasterio, membro da GNB e autor intelectual do ataque.
Posteriormente, descobriu-se que Ovidio Carrasco, soldado da Guarda de Honra Presidencial, também estava envolvido na conspiração. Julio Borges, Fernando Albán e Juan Requesens, todos parlamentares de extrema-direita, também foram apontados como partícipes do atentado.
Ainda em 2018, o governo bolivariano descobriu mais dois planos de golpe de Estado. O primeiro havia sido gestado no interior das forças armadas, por um grupo de oficiais reunidos no “Movimento de Transição para a Dignidade do Povo”, sob a liderança do general Miguel Rodríguez Torres. O segundo fora planejado na Colômbia pelo general Oswaldo García Palomo, e deveria ser executado em paralelo com as eleições presidenciais.
Juan Guaidó e as conspirações de 2019
Maduro foi reeleito presidente em maio de 2018, com mais de 6,2 milhões de votos. A eleição foi boicotada pela maioria dos candidatos de oposição, que optaram por não concorrer ao pleito em protesto à impugnação de candidaturas pela justiça eleitoral. Entre as candidaturas barradas estavam as de Leopoldo López, condenado à prisão por incitar os motins de 2014, Antonio Ledezma, que participou da conspiração do Golpe Azul, e de María Corina Machado, destituída do cargo de deputada por requisitar a forças estrangeiras a aplicação de sanções e sugerir uma intervenção militar contra o seu próprio país.
Os governos dos Estados Unidos, da União Europeia e de países latino-americanos governados pela direita se recusaram a reconhecer Maduro como presidente legítimo. A Casa Branca e o Parlamento Europeu impuseram novas sanções econômicas contra o governo venezuelano. Por fim, em janeiro de 2019, Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional, se autoproclamou presidente da Venezuela — mesmo sem ter disputado o pleito presidencial ou recebido um único voto para tal cargo. Guaidó foi imediatamente reconhecido como legítimo presidente da Venezuela pelos Estados Unidos, União Europeia e pelas nações do “Grupo de Lima”, incluindo o Brasil.
A autoproclamação de Guaidó intensificou a crise política venezuelana, fomentando novas conspirações, causando divisões na governança e nas forças armadas e incitando a ocorrência de protestos massivos e violentos por todo o país. Em 30 de abril de 2019, Juan Guaidó, Leopoldo López, Cristopher Figuera e um grupo de oficiais das forças armadas lançaram a “Operação Liberdade”. O objetivo era tomar a Base Aérea de La Carlota e utilizá-la como esteio de um movimento golpista para derrubar definitivamente Nicolás Maduro. Os golpistas, entretanto, não conseguiram obter adesão significativa dos efetivos militares e a operação foi neutralizada em poucas horas.
Outras tentativas de golpe de Estado seriam desbaratadas em 2019. Em junho, o governo venezuelano neutralizou a “Operação Vuelvan Caras”, que visava a tomada do Palácio de Miraflores e da Base Aérea de La Carlota. Dois meses depois, os agentes desmantelaram a “Operação Força e Liberdade”, que pretendia realizar um atentado terrorista contra a sede da Força de Ações Especiais da Polícia Nacional Bolivariana. E em dezembro, abafou-se uma nova tentativa de sublevação dos militares, liderada pelo tenente Josué Abraham Hidalgo Azuaje, pelo franco-atirador José Angel Rodríguez Araña e pelo sargento Darwin Balguera Rivas.
Operação Gideão
Em 4 de maio de 2020, mercenários da empresa norte-americana Silvercorp foram detidos por pescadores e policiais venezuelanos durante fracassada Operação Gideão, que tinha por objetivo derrubar Nicolás Maduro e instituir Juan Guaidó como presidente da Venezuela. A operação foi coordenada por Jordan Goudreau, fundador da Silvercorp — um exército privado de aluguel que presta serviços para o governo dos Estados Unidos.
Os mercenários planejavam tomar o controle de instalações estratégicas e matar Nicolás Maduro. No entanto, antes mesmo que desembarcassem no litoral venezuelano, eles foram avistados por pescadores que alertaram as autoridades. Com a ajuda de policiais e um helicóptero militar, os pescadores armaram uma defesa na praia. Oito mercenários foram mortos na operação e outros 17 foram capturados — incluindo dois “boinas-verdes” norte-americanos. Os mercenários foram amarrados e rendidos até a chegada das Forças Armadas Nacionais Bolivarianas. Nos dias seguintes, outros mercenários foram presos em diversas localidades, elevando o total de detidos para mais de 40.