A Convenção Constitucional do Chile, que carrega a tarefa de elaborar uma nova Carta Magna até outubro de 2022 para o país, completa nesta quarta-feira (04/08) um mês.
Entre os temas urgentes de debate da Constituinte estão a utilização dos recursos naturais, os impactos da mineração, o acesso a serviços públicos e políticas que promovam igualdade de gênero.
“A primeira demanda é desprivatizar os recursos naturais, começando pela água. Chile é o único país que estabelece na sua Constituição que o acesso ao recurso é um direito privado. Isso é uma aberração, ainda mais num contexto de crise ambiental”, assegura o constituinte pela região de Ñuble, César Uribe.
Além de tornar a água um bem público e universal, ele defende que sejam estabelecidas prioridades para a destinação de seu uso, começando pelo consumo humano, domiciliar, saneamento básico e em seguida para atividades econômicas, como a agroindústria e a mineração.
A Convenção utiliza o plenário do Congresso chileno para seus debates e deveria receber apoio técnico de uma comitiva vinculada à Presidência do país. No entanto, já no primeiro dia, a sessão atrasou horas diante da falta de espaço para receber o grupo.
“A Convenção começou do zero, sem nenhuma estrutura, norma de funcionamento ou regra instalada. Todo o processo, portanto, era mais difícil que chegar a um congresso já com uma dinâmica há anos e assumir essa dinâmica. Evidentemente, foram colocadas travas para o funcionamento da Convenção. E acho que existe uma intencionalidade do governo”, relata Uribe, também arquiteto e ativista ambiental.
Durante a abertura dos trabalhos, movimentos sociais realizaram uma manifestação em frente ao Parlamento para celebrar a data histórica. O ato pacífico foi reprimido pela polícia militar chilena, os carabineiros. Depois do episódio, o secretário executivo da Presidência, Francisco Encina, foi substituído na função de assessor do novo organismo.
No Chile, existem as chamadas “zonas de sacrifício”, nas quais a população vive sob a contaminação da mineração no ar, no solo e na água.
Dayana González, eleita constituinte na Lista do Povo pela região de Tocopilla, no norte do país, relata que a maioria da população acaba pagando caro por água contaminada.
“O norte chileno é brutalmente afetado pelo extrativismo. No deserto, o solo é muito rico, e ele é explorado por empresas que nem sequer são daqui. Enquanto utilizam água doce para a mineração, nós tomamos água de uma usina dessalinizadora instalada a 300m de uma usina termoelétrica. Ou seja, utilizam essa água, devolvem para o mar e depois ela é tratada e enviada para o nosso consumo”, conta.
Estado plurinacional
Outra demanda histórica que a Convenção buscará atender é o reconhecimento dos povos originários que constituem o país. Cerca de 12,8% da população chilena é indígena e a maior parte do seu território, o chamado Wallmapu, está militarizado.
Lideranças Mapuche são perseguidas pelas forças de segurança do Estado e as línguas indígenas não são reconhecidas como idiomas oficiais. Por isso, uma das propostas apresentadas pela bancada indígena é a substituição da atual bandeira do país.
“Há esperança de que essa Constituição reconheça o bem comum, que criemos uma Carta ecológica e com justiça restauradora que necessitamos para poder reparar o dano que fizeram a nossos territórios”, afirma González.
A proposta elaborada pela Convenção no período 2021-2022 deverá ser submetida a outra consulta popular.
Composição e funcionamento
A primeira declaração emitida pela Assembleia Constituinte, em 30 de julho, foi em defesa da liberdade de presos políticos mapuche e dos detidos durante as manifestações de outubro de 2019, que reivindicavam a reforma constitucional.
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Pela primeira vez na história do país, uma mulher indígena, a mapuche Elisa Loncón, preside um organismo constituinte
Foram criadas comissões internas para avançar em discussões temáticas: Ética e Orçamentos; Participação e Consulta Indígena; Direitos Humanos, Participação e Equidade Territorial; Comunicações; Descentralização, Equidade e Justiça Territorial; e de Regulamento, grupo que conseguiu elaborar um conjunto de regras de funcionamento do organismo.
Todas as comissões internas, assim como a mesa diretora seguem a regra de paridade de gênero, estabelecida na própria Convenção.
A eleição dos membros da Assembleia garantiu ampla maioria de representantes do campo progressista. A composição diversa ficou representada na mesa que dirigirá o organismo, com a mapuche Elisa Loncón, na presidência, e Jaime Bassa (Aprovo Dignidade) como primeiro vice-presidente.
Todas as sessões são diárias e acontecem de forma presencial e online por conta das restrições geradas pela pandemia de covid-19. A proposta dos constituintes seria realizar eventos ou sessões abertas em outras regiões do país, mas apontam a falta de verba para viagens.
A Convenção Constitucional tem um orçamento equivalente a 20% dos fundos reservados para a Câmara de Deputados, que possui a mesma quantidade de parlamentares – 155 no total.
Do montante total reservado, foram gastos até o momento 2,6 bilhões de pesos (R$ 17,342 milhões). Somente a cerimônia de posse custou 450 milhões de pesos chilenos (cerca de R$ 3 milhões), sobrando apenas 34 milhões de pesos (cerca de R$ 229 mil).
De fato, uma das reclamações dos constituintes é que houveram excessivos gastos do governo antes de a Convenção ser instalada. “Quase todos os contratos foram assinados antes mesmo que a Convenção fosse instalada”, denuncia Uribe.
Campanha midiática
Apesar dos avanços, a imprensa tradicional chilena publicou uma série de reportagens no último mês questionando a capacidade de trabalho dos constituintes. As dúvidas também foram promovidas pelos membros da direita, que afirmam que a Convenção busca atravessar os outros poderes constituídos no Chile.
Dayana González afirma que os constituintes independentes já estão discutindo alternativas para lidar com a campanha midiática contrária. “Aqui quem tem os meios são aqueles que governaram toda a sua vida”, denuncia.
Uribe concorda e diz que “há uma intenção de uma classe econômica chilena de que esse processo fracasse”. Ou seja, de acordo com os independentes, a direita chilena, que fez campanha pelo “não” no plebiscito constitucional, agora tenta boicotar a convenção desde dentro.
Uma prévia das eleições
Depois que os chilenos optaram por uma maioria de independentes tanto na eleição dos constituintes como para a eleição de governadores, desacreditar esse setor da sociedade seria estratégico para as eleições de novembro deste ano.
Enquanto se engajam nos debates, as chapas também se preparam para as eleições parlamentares e presidenciais de novembro. O presidente Sebastián Piñera encerra sua gestão com um recorde de 72% de reprovação, de acordo com pesquisa de opinião do Centro Estratégico de Geopolítica (Celag).
Gabriel Boric (Aprovo Dignidade) será o candidato pela esquerda e Sebastián Sichel (Chile Vamos) é o nome já escolhido pela direita. Ainda assim, outras candidaturas podem se inscrever.
Para parte dos constituintes da Convenção, esse processo eleitoral de novembro e o próximo ano dos trabalhos da proposta da nova Carta Magna serão decisivos para a possibilidade de abandonar o atual modelo econômico neoliberal do país. “Nós necessitamos de um modelo econômico que nos projete mais vida. Este é o momento que devemos colocar toda nossa força para avançar”, garante Dayana González.