(Provérbios 11:23) O desejo dos justos resulta em bem; a esperança dos ímpios, em ira.
Eis que, um dia, um homem, que se considerava justo, acordou e leu nos noticiários que um outro homem, com quem ele não simpatizava, havia tido suas condenações anuladas em virtude de ilegalidades decorridas em seu processo. O homem, que não entendia de processos, mas acreditava entender de justiça, se indignou. Ora, pensou, como que pode uma tecnicidade impedir a justa aplicação do que lhe parecia ser justo? É isto que é a justiça? Irado, jogou o jornal amassado no chão da sala e decidiu sair de casa, para espairecer.
Desceu o elevador resmungando. Era evidente que as coisas só estavam como estão justamente pela falta da aplicação do que lhe parecia justo. Ao chegar, ainda murmurando, no estacionamento de seu prédio, foi pego de surpresa. No para brisas do seu automóvel estava, colada, uma multa informando que seu carro estava estacionado de forma irregular. Dentro do prédio? Em sua própria vaga de garagem? Uma multa? Qual agente de fiscalização poderia ter entrado ali?
Acontece que a vaga de garagem de sua unidade era uma das mais complicadas do prédio. A vaga do seu apartamento 203 – mal projetada – atrapalhava a entrada do apartamento 202, que ficava logo em seguida. E, desde que o recente vizinho, proprietário de uma caminhonete, havia se mudado, os problemas aumentaram ainda mais: arranhões, interfones, pedidos para deixar a chave e o carro aberto, pedidos para estacionar mais para trás e o que – para ele – foi o mais absurdo: um pedido de troca de vaga, afinal, a sua era um pouco mais espaçosa. Os últimos meses haviam lhe tirado a paciência, mas aquela multa, ali, colada em seu para-brisas, definitivamente era o ultraje final.
Imediatamente foi ao porteiro perguntar se ele sabia quem fizera aquele afronte. O porteiro, receoso, recomendou procurar o síndico. O síndico, receoso, informou que o novo morador do 202 era superintendente regional do DETRAN e que, buscando nas filmagens, viu que ele mesmo colou a multa em seu para-brisa. O síndico, ainda mais receoso, disse que “por ele ser uma autoridade, não podia fazer nada” e recomendou conversar diretamente com o proprietário da caminhonete ou que procurasse uma unidade do DETRAN para recorrer da infração.
Ainda mais revoltado do que estava pela manhã, tirou a multa do para-brisa, colocou no bolso e se dirigiu à unidade de atendimento do DETRAN mais próxima da sua casa. Lá chegando, solicitou ao recepcionista uma reunião imediata com o superintendente regional. O recepcionista, receoso, informou da impossibilidade de o superintendente atender todas as pessoas que chegavam diariamente para recorrer de multas e entregou-lhe um formulário padrão, no qual dizia que ele possuía o direito, primeiro, de apresentar, em 15 dias, uma Defesa de Autuação. Depois, em 30 dias, um Recurso de Multa e, se indeferido, buscar uma Defesa Processual, podendo abrir Recurso contra cassação do direito de dirigir, se for o caso, ou até a identificação de um terceiro condutor. E que a equipe do próprio superintendente iria apreciar seu recurso e, dentro de dois meses, no máximo três, receberia uma resposta.
O homem nem respondeu. Frustrado, desfranziu a testa, virou-lhe as costas e saiu da unidade de atendimento do DETRAN. Caminhando lentamente para o seu carro, identificou a caminhonete do 202 estacionada, na esquina do prédio da unidade. Com o para-choque traseiro sobre uma rampa de acesso a cadeirantes. Imediatamente pegou sua multa e deixou sobre o para-brisa do automóvel.
Voltou para casa ainda mais irado, estacionou seu carro em sua vaga de estacionamento – o mais colado na parede possível – e respirou fundo. Subiu o elevador ainda atônito e, ao abrir a porta, viu no chão de sua sala o jornal amassado. Leu novamente a manchete e percebeu que nem sempre o que lhe parece justo é o certo; que nem sempre o que lhe parece injusto é errado. Que uma justiça que lhe satisfaz, quando viciada, é apenas uma injustiça travestida de justiça. E percebeu, finalmente, que uma justiça justa há de ser, sempre, imparcial.
Por isso, filhos, em verdade vos digo: a justiça deve ser, sempre, cega. E a injustiça nunca deve lhe deixar cego. O justo é aquele capaz de enxergar a justiça, mesmo quando lhe é justa com quem não se simpatiza.
Por: @OCriador