Com a recriação do Ministério dos Direitos Humanos dentro de um governo federal progressista no Brasil, são retomadas as apostas para que seja realizado um novo julgamento sobre a validade da Lei de Anistia de 1979, a legislação impede que militares e agentes da repressão sejam punidos por crimes ocorridos durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985). A Lei nº 6.683 – assinada pelo general João Batista Figueiredo – completará 44 anos em 28 de agosto.
Enquanto isso, outros países sul-americanos, como o Uruguai, já derrubaram legislação similar (nº 15.848) há mais de uma década. Com a medida, a lei foi considerada inconstitucional.
Também no Uruguai funciona sem interferência do Estado uma procuradoria especializada em crimes contra a humanidade, que ao longo de quase cinco anos de existência, já promoveu dezenas de ações judiciais e levou para a prisão agentes da repressão que cometeram crimes durante a ditadura.
O caso mais recente ocorreu em dezembro do ano passado, quando os coronéis do exército uruguaio Carlos Alberto Rossel Argimon e Glauco José Yannone de Leon foram presos. Eles integravam o grupo que em 1978 sequestrou o casal Lilián Celiberti e Universindo Rodríguez e seus dois filhos, Camilo e Francesca, então com sete e três anos, em Porto Alegre, durante as ditaduras uruguaia e brasileira.
O chefe dessa Procuradoria, Ricardo Perciballe, em entrevista exclusiva a Opera Mundi, conta como é composto este órgão criado para investigar todos os crimes de homicídio, desaparecimento forçado, tortura, privação de liberdade, abuso sexual, por motivos políticos, ideológica ou sindical durante a ditadura uruguaia, além de atuar em crimes perpetrados no exterior no âmbito do Plano Condor a respeito de vítimas uruguaias.
Perciballe explica que a Procuradoria Especializada “atua com absoluta independência de critérios sem receber qualquer mandato de seu superior hierárquico ou de qualquer outra autoridade do Estado”. E destaca a importância do engajamento da sociedade civil neste tipo de trabalho.
O Estado uruguaio mudou de posição em relação à sua lei de anistia depois que fora condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2011. Importante destacar que o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos em 1992 e reconheceu a jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos em 1998, o que permite que o Estado brasileiro seja processado e julgado pelo tribunal.
Existem atualmente na Corte 11 casos contra o país, sendo que dez já foram julgados e o Brasil condenado.
O Tribunal Interamericano de Direitos Humanos reconhece que a Lei da Anistia no Brasil impede a investigação e a responsabilização de graves violações de direitos humanos. Assim, se torna incompatível com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
A Corte internacional reconhece que o desaparecimento forçado é uma violação que perdura no tempo e afeta de forma negativa a integridade pessoal dos familiares das pessoas desaparecidas. Foi considerado que o governo brasileiro violou os direitos à vida, à integridade e liberdade pessoais, às garantias e proteções judiciais e à liberdade de pensamento e de expressão, em relação ao direito de buscar informação e ao direito à verdade.
Leia abaixo a entrevista com o procurador uruguaio Ricardo Perciballe:
Opera Mundi: o que é a Promotoria Especial para Crimes contra a Humanidade e qual sua função?
Ricardo Perciballe: a Promotoria Especializada em Crimes contra a Humanidade (Fiscalía Especializada en Crímenes de Lesa Humanidad – em espanhol), como o próprio nome indica, é uma promotoria especial criada para investigar todos os crimes dessa natureza – homicídios, desaparecimentos forçados, tortura, privação de liberdade, abuso sexual, por motivos políticos, ideológica ou sindical – ocorridos entre 13 de junho de 1968 e 28 de fevereiro de 1985 (período que antecede o golpe militar no Uruguai e a data de encerramento do regime de exceção).
É a única Procuradoria do país com jurisdição nacional. Em outras palavras, atua em todas as causas dessa natureza que ocorram em qualquer parte do país, assim como em crimes perpetrados no exterior no âmbito do Plano Condor a respeito de vítimas uruguaias.
Não obstante, também coordena ações com o Instituto Nacional de Direitos Humanos que, pela Lei 19.822 desde 2020, é responsável pela busca administrativa dos detentos desaparecidos.
Quando ela foi instituída? Como é composta e a quem está atrelada?
A Procuradoria especializada foi criada pela Lei 19.550 do ano de 2017 e começou a funcionar em 23 de fevereiro de 2018.
Faz parte da Procuradoria-Geral da República (Fiscalía General de la Nación – FGN – em espanhol), órgão descentralizado da estrutura do Estado. Tanto a Procuradoria-Geral quanto a própria Procuradoria Especializada para Crimes contra a Humanidade possuem absoluta independência técnica em suas ações.
Assim, ele atua com absoluta independência de critérios sem receber qualquer mandato de seu superior hierárquico, ou de qualquer outra autoridade do Estado. É óbvio que suas ações são regidas pelos princípios da Legalidade e da Objetividade. Atualmente conta com um promotor titular, Dr. Ricardo Perciballe, três promotores associados e dois funcionários administrativos, além de um importante apoio da Procuradoria Geral da República.
Fora do FGN, a Promotoria Especializada conta com o apoio de diferentes órgãos criados pelo Estado uruguaio, tais como a Secretaria de Direitos Humanos do Passado Recente, que por cerca de 15 anos contou com uma equipe de historiadores que compilaram uma grande quantidade de informação desses anos e estudaram e classificaram os diferentes arquivos de inteligência encontrados.
Há ainda apoio da AJ PROJUMI (Archivos Judiciales procedentes de la Justicia Militar – em espanhol), que é uma dependência do Poder Judiciário que se encarregou de digitalizar todos os arquivos da ‘Justiça militar’; a Equipe Auxiliar de Polícia para a investigação destes crimes e a Cátedra de Medicina Legal e Ciências Forenses da Faculdade de Medicina.
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Marcha do Silêncio no Uruguai ocorre anualmente pedindo justiça pelos desaparecidos durante a ditadura
Quais as principais ações já desenvolvidas pela promotoria?
Compete à Procuradoria Especializada investigar e promover ações judiciais em cerca de 140 casos que atingem centenas de vítimas, pelo antigo Código de Processo Penal (escrito e semi-inquisitivo onde a investigação é compartilhada por um Juiz de Instrução e o Ministério Público).
Nestes casos obtivemos dezenas de processos e condenações e encontram-se também pendentes mais de 20 pedidos de acusação e prisão preventiva.
[Há ainda] cerca de oito casos para o novo Código de Processo Penal – Processo Acusatório onde a investigação está a cargo do Ministério Público – neste caso obtivemos quatro formalizações, ou seja, o julgamento começou e diferentes autores estão sujeitos a processos , e as demais estão em fase de investigação.
Quais os principais resultados obtidos pelo trabalho dos promotores?
Obtivemos diferentes processos – início do julgamento e prisão preventiva – e condenações de um número significativo de criminosos. Até agora, todos os pedidos de ação penal ou formalizações e sentenças exigidas pelo Ministério Público foram acolhidos pelos diferentes Juízes e Tribunais do Uruguai.
Há resistência da sociedade uruguaia ao trabalho desenvolvido pela promotoria? E do governo?
Não percebemos que a sociedade uruguaia se opõe ao trabalho de nosso Ministério Público. O que podemos afirmar é que um grupo significativo deles vê nosso trabalho como positivo. E, obviamente, quem dá maior apoio ao Ministério Público são as vítimas em geral, os grupos (organizados) de vítimas, bem como todas aquelas organizações ligadas à defesa dos direitos humanos.
Também não se pode dizer que o governo resiste à nossa tarefa. A realidade é que os diferentes órgãos do Estado – nesta gestão como na anterior – cumprem todas as solicitações do Ministério Público. Da mesma forma, como apontamos anteriormente, temos a logística necessária para cumprir corretamente nossa obrigação.
Houve atuação da promotoria junto ao Ministério Público no Brasil? Qual, onde e como?
Até agora não trabalhamos com o Ministério Público do Brasil.
A Promotoria já identificou agentes brasileiros da repressão que atuaram durante o período da ditadura no Uruguai? Se sim, quem?
Não investigamos nenhum agente do Estado brasileiro que tenha atuado no Uruguai, ou que tenha participado desse país em detrimento de alguma vítima uruguaia.
No Brasil a chamada Lei da Anistia criou enorme barreira para o desenvolvimento de investigações, autuação e julgamento dos agentes da ditadura durante o período de repressão. O senhor acredita que esse obstáculo pode ser superado e a Justiça julgar os crimes da ditadura no Brasil? Se sim, como?
Não conheço a realidade brasileira. O que posso apontar é o que aconteceu aqui. No Uruguai também havia uma Lei (15.848) que impedia o julgamento de crimes contra a humanidade.
Durante anos essa Lei vigorou, até que em 2011 foi declarada inconstitucional.
Depois disso, e da condenação do Uruguai pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gelman versus Uruguai (refere-se às violações dos direitos fundamentais de Maria Claudia García Iruretagoyena Gelman em decorrência de seu desaparecimento forçado, ocorrido em 1976, e a supressão da identidade de sua filha María Macarena Gelman Garcia Iruretagoyena, no âmbito da Operação Condor), também de 2011, as coisas mudaram e os julgamentos puderam ser iniciados ou retomados.
Obviamente nada foi fácil e ainda não é, mas com avanços e retrocessos as investigações continuam.
Qual o crime mais contundente que a Promotoria identificou e quem são as pessoas envolvidas na Operação Condor?
Tudo o que está implícito no Plano Condor em geral, como os crimes perpetrados no seu âmbito, é de uma gravidade invulgar. O Uruguai foi afetado em particular, porque através dele ocorreu o maior número de desaparecidos e até mortes por motivos políticos. Da mesma forma, envolveu a transferência clandestina da Argentina e do Brasil de um grupo muito importante de vítimas.
Entre essas vítimas estão dois parlamentares, o senador Zelmar Michelini, da Frente Ampla, e o deputado Hector Gutierrez Ruiz, do Partido Nacional, ao qual pertence o atual presidente da República (Luis Alberto Lacalle Pou). A eles se juntou um grupo importante de dirigentes sindicais e políticos de grande valor.
Agentes de inteligência pertencentes ao Serviço de Informação de Defesa (SID) – destacados do Uruguai pela Coordenação de Operações Antissubversivas (OCOA) – ambos do Exército Nacional, em coordenação com a Direção Nacional de Informação e Inteligência (ID) da Polícia.
A busca por verdade e justiça em relação aos crimes da ditadura é um trabalho exclusivo apenas de órgãos do Estado ou é necessário o engajamento de todo sociedade?
O avanço em “Verdade, justiça, memória e nunca mais” no Uruguai foi e continua sendo um longo e complexo caminho percorrido por organizações de defesa dos direitos civis. Fundamentalmente por mães e familiares de detidos-desaparecidos e a CRYSOL – organização que congrega os ex-presos políticos uruguaios.
Bem, entre tantas outras ações que essas organizações realizam diariamente – incluindo a demanda pela criação da Promotoria Especializada em Crimes contra a Humanidade – todo dia 20 de maio de cada ano – na data em que ocorreram os assassinatos na Argentina dos parlamentares uruguaios Zelmar Michelini e Hector Gutierrez Ruiz e os ativistas políticos Rosario Barredo e William Whitelaw – realiza-se a maior manifestação de todo o país.
Manifestação que acontece desde 1996, que ocorre em total silêncio, apesar de ser acompanhada de um slogan diferente a cada ano, é sempre reivindicada pela “Verdade, justiça, memória e nunca mais”.