Um ex-militar colombiano, Palacios, de 45 anos, investigado por participação no assassinato do ex-presidente do Haiti Jovenel Moïse, em julho de 2021, admitiu seu envolvimento no crime perante um tribunal federal de Miami, nos Estados Unidos, nesta sexta-feira (22/12). Pouco antes, na terça-feira (19/12), o mesmo tribunal condenou o ex-senador haitiano John Joel Joseph à prisão perpétua por conspiração contra o então mandatário.
Apesar dos aparentes avanços nas investigações sobre a invasão residencial seguida pelo assassinato de Moïse em 7 de julho de 2021, o país caribenho vive uma crise sem precedentes, não apenas política, mas também social e de segurança, que foi apenas ampliada pelo magnicídio.
Para o doutor em relações Internacionais e representante da Organização dos Estados Americano (OEA) no Haiti (2009-2011) Ricardo Seitenfus, o país é uma mistura de “símbolo de luta” e “rejeição” – características históricas que marcaram a crise que a nação está inserida mesmo antes da morte de Moïse.
“O Haiti foi o primeiro e único país a se libertar, em 1804, do jugo colonial [da França], da escravidão, e do racismo, que eram os três pilares da economia mundial na época. Mas também por isso, o país foi rejeitado desde o início, e não apenas pelos governos oponentes, mas também por aqueles que ajudou no processo da independência, como no caso de Simón Bolívar”, relacionou o acadêmico em entrevista a Opera Mundi.
Diante disso, Seitenfus afirma que a rejeição ao Haiti não funciona apenas na questão político-ideológica, mas também nos âmbitos universitário e filosófico: “nunca reconhecemos os méritos haitianos pelos seus feitos revolucionários”.
Tal repulsa leva o especialista a avaliar o país como “um buraco negro da consciência ocidental” por ter sido inserido no que chamou de “200 anos de solidão”.
Minustah, terremoto e cólera
Após se libertar do jugo colonial francês, o Haiti viveu décadas sob uma divisão imposta a ele: interessante aos Estados Unidos, mas territorialmente muito próximo a Cuba.
Apesar dos interesses norte-americanos, o acadêmico classifica o país caribenho como “um dos grandes fracassos da política externa dos EUA”, porque, com a ajuda de sua influência, a nação enfrenta estatísticas drásticas: 45% da população sofre de insegurança alimentar, 70% está desempregada e 80% é analfabeta em um território dominado por gangues diante da instabilidade política.
“Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos fecharam os olhos para muitas atrocidades cometidas no Haiti com a perspectiva da luta contra o comunismo, e quem pagou um preço muito alto por isso foi a população haitiana sob o regime de terror implantado”, afirmou ele à reportagem.
Entre governos instáveis e influência externa, a Organização das Nações Unidas (ONU) implantou 10 missões em 30 anos com o objetivo de estabilizar o Haiti, sendo a mais famosa delas a Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (Minustah), que durou de 2004 a 2017.
Na avaliação do ex-representante da OEA, a Minustah “cumpriu um papel importante até o terremoto [em 2010]”, já que, para Seitenfus, missão conseguiu “lidar com as gangues em 2005 e 2006. Apesar de ter tido alguns efeitos colaterais e violências desnecessárias, ela deu uma certa estabilidade ao país”.
“Em 2009, o Haiti começou a ter índices positivos de crescimento econômico, e na época se pensava em um 'modelo de saída da crise', ou seja, como fecharíamos as malas e iríamos embora com a Minustah, mas em 12 de janeiro de 2010 aconteceu o terremoto, que evidentemente mudou tudo, e ninguém estava preparado”, disse Seitenfus.
Na data, um terremoto de 7.3 graus na escala Richter atingiu a capital Porto Príncipe em uma catástrofe que ao menos matou 230 mil pessoas na região metropolitana, deixou 1,5 milhão sem abrigo e 300 mil feridos. “A partir daí, começaram uma série de erros”, avaliou o entrevistado.
Em sua avaliação, o primeiro erro foi a interferência internacional de países como o Brasil e os Estados Unidos nas eleições haitianas e a excessiva militarização do país, que precisava, na verdade, de ajuda e reconstrução.
“A partir daí foi uma descida gradual à crise. E em outubro de 2010 aparece a cólera. A ONU esconde sua responsabilidade e só reconhece em 2017, o que é um absurdo”, classifica.
Em 2017, a missão é retirada do país caribenho “em uma situação muito delicada porque não se sabia mais o que fazer”, mas organizando eleições que levaram Moïse ao Palácio Presidencial.
Wikicommons
Minustah, missão da ONU de 2004 a 2017 no Haiti, foi apenas uma das 10 enviadas ao país caribenho
Instabilidade política
Para Seitenfus, a origem da política instável do país – que conta com 266 partidos que não dialogam entre si – começou na interferência externa nas eleições de 28 de novembro de 2010, em que houve a mudança de resultado do primeiro turno: o candidato Michel Martelly, que estava em terceiro lugar, foi passado para o segundo, disputando o segundo turno com a política e ex-primeira dama à época Mirlande Manigat. Como resultado, Martelly conquistou a Presidência e governou o Haiti de 2011 a 2017.
O professor também classificou o sistema político do país como um “problema seríssimo”, apesar de ser constitucional. “O presidente, uma vez eleito, tem que propor ao Parlamento um ´primeiro-ministro, que pode ou não aceitá-lo. Assim, o presidente precisa ter não somente uma maioria presidencial para governar, mas também a maioria parlamentar, se não ficará refém da Casa”, explicou sobre o bicefalismo do Executivo haitiano em uma situação que impede “que o país tenha uma administração coerente”.
Outra questão é a falta de um vice-presidente, que se faz necessário no momento atual da política haitiana, em que Moïse foi assassinado há dois anos e meio “e não tem mais ninguém que assuma o país”, explica.
Atualmente Ariel Henry ocupa o cargo de primeiro-ministro e presidente interino do país, se negando a convocar novas eleições.
Resolução ‘que deve ser analisada pelo silêncio’
O Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), com 13 votos positivos, foi favorável à uma nova resolução para o Haiti, solicitada por Henry. A aprovação ocorreu em 2 de outubro, e Seitenfus explica que essa não é uma missão da ONU, mas sim financiada por países voluntários, como o caso do Brasil e dos Estados Unidos que vão enviar mantimentos e ajuda para a população, mas não soldados.
Sobre o documento, o professor explicou a Opera Mundi que essa é uma resolução “que diz algumas coisas, mas que também deve ser analisada pelo seu silêncio”, como o fato de não mencionar a OEA como mediadora.
No entanto, mencionou, por exemplo, o tratamento das águas de esgoto e limpeza de latrinas porque “foi justamente ali que nasceu a cólera”. “É uma resolução que vai apagar o incêndio: a violência nos meios urbanos e na região de Porto ´Príncipe, mas não vai tocar nos pontos principais, que é a desesperança geral do povo haitiano”, avaliou.
Para o acadêmico, a nova resolução carece de aspectos sobre desenvolvimento socioeconômico e apenas faz “primeiros socorros, sem tocar nas raízes do incêndio”.
“Com esses índices de subdesenvolvimento não há possibilidade de criar uma estabilização. A democracia representativa exige um mínimo de desenvolvimento econômico e social e um nível de responsabilização política, e isso não não ocorre”, adiciona ainda.
Com o foco no combate às gangues, o Quênia encabeçou a responsabilidade de enviar policiais para o Haiti. Mas Seitenfus avaliou a capacidade das forças de seguranças do país africano em combater o que seria uma espécie de “guerrilha urbana”.
“Provavelmente forças policiais do México, Guatemala, Colômbia e Brasil teriam mais condições de realizar a missão”, disse o especialista mesmo sabendo que Brasília e Washington já negaram o envio de soldados devido ao histórico trágico da Minustah e pelo fato de que a missão agora é centrada na segurança, o que pode levar a muitas mortes de soldados.
Ainda com muitas questões a serem definidas, a nova resolução do Conselho de Segurança da ONU começará a ser colocada em prática apenas a partir de 1º de janeiro de 2024.