Após 20 anos sob o governo do presidente Recep Tayyip Erdogan, a Turquia vai às urnas neste domingo (14/05) em eleições presidenciais e parlamentares. Diferentemente das últimas duas décadas, o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) corre risco de deixar a administração do país, como indicam pesquisas.
De acordo com os resultados da pesquisa Konda, Erdogan apresenta 43,7% das intenções de voto, enquanto seu principal adversário, Kemal Kiliçdaroglu, do Partido Republicano do Povo (CHP) e da aliança de oposição União pelo Trabalho e Liberdade, tem 49,3%.
Caso nenhum dos candidatos obtenha mais de 50% dos votos neste domingo, a eleição turca deve ser decidida em um eventual segundo turno, em 28 de maio. No entanto, o candidato Muharrem Ince, enxergado como uma “terceira via”, desistiu do pleito na última quinta-feira (11/05), possivelmente abrindo cerca de cinco pontos percentuais para Kiliçdaroglu, defensor da restauração do sistema parlamentarista, que justamente foi derrubado durante a administração de Erdogan, em 2017.
Opera Mundi ouviu a jornalista, cientista política e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Beatriz Bíssio, que explicou o cenário apontando que impactos de uma derrota do atual presidente em temas como alinhamento geopolítico com a Rússia, participação na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), e o relacionamento com o povo curdo, maior população apátrida do mundo, que conta com 14 milhões de habitantes apenas na Turquia.
Três mandatos, 20 anos no governo
Erdogan se manteve por 20 anos no poder da Turquia, e Bísso analisa que a aderência ao atual presidente também vem do fato de que ele é “um mulçumano que se encarregou” da pauta religiosa. Ela lembra que, embora a Turquia seja um país laico, desde a Revolução Queimarista, no início do século 20, ela foi progressivamente reforçando hábitos que fortaleceram a população muçulmana.
Erdogan, com 69 anos, começou a carreira no comando do país como primeiro-ministro e, depois dessa eleição, “em que o Parlamento deixou de ser quem definia a Presidência e houve eleições diretas, ele se tornou presidente”.
É a partir da Presidência de Erdogan que o sistema político turco é reformulado, de acordo com Bíssio: “tirando poderes do Parlamento e através de uma consulta popular, de um referendo, ele vai então propor e consegue realmente apoio para transformar o sistema parlamentar num sistema parlamentarista, ou seja, concentrando, evidentemente, poder político nas suas próprias mãos”.
Apesar de três governos consecutivos como presidente, as pesquisas eleitorais apontam para uma eventual perda do representante do partido AKP para a oposição, e Bísso afirmou que um dos fatores relacionados é o terremoto que atingiu o país no mês de fevereiro, sendo responsável pela morte de ao menos 44 mil pessoas.
“Uma das questões em relação a essas pesquisas, justamente, é que não há uma certeza do que vai acontecer com o voto de em torno de 9 milhões de turcos que foram deslocados dos seus locais normais de moradia pelo terremoto, e muitas vezes indo para outras província”, destacou a professora.
Presidência da Turquia
Kemal Kiliçdaroglu, da oposição turca, encontra com Recep Tayyip Erdogan, atual presidente do país
Bíssio aponta que o limite da data para mudar a residência eleitoral foi “poucos dias depois do terremoto”, em um momento em que a população afetada não estava preocupada com os seus títulos eleitorais. Para além disso, “o acesso a essas regiões afetadas pelo terremoto ainda continua muito difícil”.
Para a especialista, o fator terremoto vai ter peso nos resultados eleitorais muito além da questão de localização das zonas de voto. “Tem um grande descontentamento, uma frustração muito grande, de uma parcela muito significativa daqueles que foram afetados, deslocados e pela lentidão das respostas do que aconteceu em fevereiro, mostrando que houve um problema de gestão e de administração de recursos”, disse.
Outro ponto de atrito, segundo a professora, é relacionado ao posicionamento de Erdogan após a tentativa de golpe de Estado na Turquia em 2016. A administração do presidente defendeu o evento como uma tentativa do pregador islamita Fetullah Gulen e seus seguidores em tomar o governo de Ancara.
“Esse é um ponto de atrito de Erdogan com os Estados Unidos, pois a Turquia tem pedido a extradição de Gulen, que está refugiado no país norte-americano. Depois dessa tentativa de golpe, o governo se tornou menos aberto em relação à imprensa, deteve jornalistas, professores e funcionários públicos, tendo em um primeiro momento 140 mil presos políticos”, afirmou Bíssio.
A professora ainda apontou para o apoio que a população curda tem dado para a oposição, representada por Kiliçdaroglu. Segundo ela, a Turquia é o país onde os curdos mais têm sofrido violência, com direitos e autonomia desrespeitados. Apesar desse posicionamento “não ser uma característica exclusiva do governo de Erdogan, eles estão na oposição”.
Diplomacia e geopolítica mundial
Por sua vez, no contexto diplomático e internacional, a Opera Mundi, Bíssio disse que a política externa da Turquia, em uma eventual vitória da oposição, ainda não está clara, mas adianta que as relações entre Turquia e Rússia não são de completo alinhamento.
“Erdogan cultivou, depois da guerra na Ucrânia, um diálogo com Vladirmir Putin [presidente da Rússia], inclusive facilitando o escoamento da produção agrícola. Mas não podemos esquecer que nos conflitos da região do Caucaso, por exemplo, estão de lados opostos. A Rússia tem sido solidária com a Armênia cristã, enquanto a Turquia apoia o Azerbaijão, de maioria muçulmana”, declarou.
Apesar do não-alinhamento incondicional entre Moscou e Ancara, a especialista apontou para a perda de uma figura mediadora no conflito da guerra na Ucrânia caso Erdogan perca as eleições, uma vez que essa colocação da Turquia como mediadora é uma “parcela de atitude pessoal” do atual presidente.
Além da decisão presidencial, as eleições deste domingo renovam o Parlamento turco. Bíssio recordou que, caso Erdogan vença o pleito, pode ser com maioria no Legislativo, estando assim consagrado. No entanto, sem a maioria parlamentar, “pode complicar muito suas posições futuras”.