O advogado israelense Eitay Mack é um dos especialistas que analisou a influência de Israel durante as ditaduras e guerras civis na América Latina. As pesquisas do também ativista dos direitos humanos apontam que Tel Aviv tinha relações boas com os regimes latinos antes mesmo da onda de golpes militares nas décadas de 1960 e 1970.
A Opera Mundi, Mack citou alguns casos em a pesquisa reconheceu o papel militar de Israel em países como Guatemala, Argentina, Chile e Brasil. Segundo ele, esse apoio foi uma tática do governo israelense para retomar relações diplomáticas com diversos Estados após as guerras de 1967 e 1973, respectivamente a Guerra dos Seis Dias e Guerra do Yom Kippur.
“Ao contrário dos Estados Unidos, Israel não estava envolvido diretamente nos golpes militares aqui citados, mas ajudou na sobrevivência das ditaduras, na repressão interna e nos crimes que elas praticaram por muitos anos”, disse.
Como, por exemplo, a guerra civil guatemalteca, de 1960 a 1996, cuja a Presidência era ocupada por Carlos Castillo Armas. O período resultou em 200.000 indígenas da etnia maya assassinados pelo Estado e mais de 1 milhão foram deslocados. De acordo com o advogado, as forças estatais da Guatemala foram “armadas e treinadas por Israel”.
Leia na íntegra a entrevista de Opera Mundi com Eitay Mack:
Opera Mundi: suas pesquisas recentes apontam a colaboração de Israel com as ditaduras latino-americanas, especificamente o apoio aos regimes da Argentina, Brasil e Chile. Como isso pode ter acontecido?
Eitay Mack: Israel tinha relações relativamente boas com os regimes da América Latina mesmo antes da onda de golpes militares nas décadas de 1960 e 1970. Cada país tem uma própria história específica com Israel. Após as guerras de 1967 e 1973, Tel Aviv estava isolada do mundo, já que dezenas de países cortaram relações. Além disso, sofreu com inflação e estava desesperado por moeda estrangeira. É por isso que Israel estabeleceu relações diplomáticas e militares alternativas com os regimes que compravam equipamentos militares e treinamento.
Ao contrário dos Estados Unidos, Israel não estava envolvido diretamente nos golpes militares citados, mas ajudou na sobrevivência das ditaduras, na repressão interna e nos crimes que elas praticaram por muitos anos.
Nesse contexto, é preciso dizer que se deve ter cuidado para não afirmar falsamente que Israel é a causa da opressão na América Latina e que, sem ele, não haveria militarização e violência governamental. Isso existe devido à história política da sociedade, do colonialismo, imperialismo, racismo e do capitalismo na América Latina. Israel se aproveitou das condições existentes na região para promover cinicamente seus próprios interesses, mas não foi Israel quem as criou.
As técnicas israelenses de combate e repressão militar ainda estão presentes na América Latina mesmo em governos progressistas?
Os regimes progressistas na América Latina são, em sua maioria, populistas e não fazem mudanças reais nas relações de poder. Embora alguns países tenham conseguido melhorar as condições de vida das populações pobres e minoritárias quando estão no poder, os progressistas se integram às elites existentes e não tentam realmente enfraquecê-las. Entre outras coisas por causa do problema da corrupção, que também existe no lado progressista, e também devido ao trauma dos golpes militares. Em particular, eles continuam mantendo os modelos existentes de uso da força e da repressão e não agem seriamente para mudar as forças de segurança locais e federais.
Portanto, embora alguns deles façam declarações fortes sobre o Estado de Israel, nos bastidores eles continuam a ‘fazer negócios como de costume’, incluindo os de armas e treinamento. Um bom exemplo foi o que vimos recentemente com os presidentes do Brasil e da Colômbia [Luiz Inácio Lula da Silva e Gustavo Petro, respectivamente] que se pronunciaram da maneira mais dura sobre a guerra em Gaza, mas, na prática, continuam com todos os negócios. Na verdade, suas condenações são destinadas às necessidades políticas internas de seus partidos e dos sindicatos associados a eles, mas não acho que Israel pode levá-los a sério.
Fritz Cohen/GPO
Chanceler Mario Gibson Barboza, primeiro chanceler brasileiro sob a ditadura militar, com a primeira-ministra israelense Golda Meir
Em outras ditaduras latino-americanas, como a da Nicarágua, Israel também é listado como um forte apoiador de Anastasio Somoza. De onde veio esse relacionamento?
Desde sua criação, o Estado de Israel havia apoiado militar e politicamente o regime da família Somoza na Nicarágua. Essa foi uma das ditaduras mais brutais e corruptas que existiram no século XX. Assim como no apartheid na África do Sul, na última fase do regime de Somoza o Estado judeu estava entre os últimos países do mundo que continuaram dando apoio à ditadura.
A última fase da revolta contra Somoza começou em janeiro de 1978, quando grandes greves e manifestações eclodiram em todo o país, e os ataques do movimento guerrilheiro (os sandinistas) também aumentaram. Somoza fez uso extensivo de aviões, helicópteros, tanques e artilharia para bombardear bairros da oposição, enquanto soldados assassinos da Guarda Nacional os invadiam a pé, executando homens e meninos, torturando moradores e estuprando mulheres.
De acordo com minha pesquisa, os telegramas nos arquivos dos EUA indicam que as remessas de armas de Israel continuaram sendo enviadas a Somoza pelo menos até abril de 1979 (em junho do mesmo ano, outro navio com armas foi enviado de Israel, mas os EUA o impediram), ou seja, até três meses antes do fim do regime da dinastia Somoza.
Em um telegrama datado de 20 de junho de 1979, enviado da Embaixada norte-americana em Tel Aviv, estava escrito que o adido militar dos EUA conversou com o então supervisor de Exportações de Defesa do Ministério da Defesa de Israel, Ya’akov Shapira.
Shapira lhe disse que a política norte-americana em relação a Somoza estava errada, que o Estado de Israel continuaria apoiando os seus amigos, e que a Nicarágua ajudou Israel em 1948. Ele afirmou na época que os EUA deveriam continuar apoiando regimes do tipo nicaraguense, caso contrário os comunistas os substituiriam.
Israel é acusado de crimes contra a humanidade e violações do direito internacional pelo que faz com os árabes palestinos. Mas será que é possível responsabilizar Israel por sua participação indireta nas ditaduras latino-americanas?
Como não há prazo de prescrição para crimes de guerra e crimes contra a humanidade, e há provas suficientes de que Israel e israelenses ajudaram as ditaduras, eu, juntamente com ativistas israelenses de direitos humanos, incluindo familiares e amigos dos desaparecidos, estamos trabalhando para levar à Justiça israelense os suspeitos.
É claro que o procurador do Estado está tentando atrasar o processo, em minha opinião, já que os envolvidos dos crimes não são mais jovens e, portanto, poderão envelhecer em paz. É preciso dizer que os governos da América Latina, inclusive os progressistas, não estão ajudando por causa de seus interesses com Israel, que continuam até hoje. Especificamente, eles estão escondendo documentos e provas e, ou seja, ajudando no encobrimento.
Quais são as convergências entre a América Latina e o Oriente Médio, além do fluxo de armas e técnicas militares de Israel?
Há muitas coisas que mudaram desde os regimes e há outras que não mudaram. Em geral, à luz do declínio da posição dos EUA e do fim da Guerra Fria, Israel agora tem um papel muito menos significativo na repressão na América Latina e não serve mais como substituto de Washington quando não pode deixar de vender armas.
Se nas décadas de 1970 e 1980 Israel vendeu uma parte significativa de suas armas para a América Latina, hoje em dia os números são relativamente insignificantes em comparação com outros lugares do mundo. É claro que a quantidade de dinheiro não é a única medida. O treinamento militar é relativamente barato, e o treinamento israelense ainda é bastante popular na região, especialmente o que ensina combater o terrorismo que, na realidade, é usado para suprimir e controlar populações pobres, minorias e grupos de esquerda.
Nessas circunstâncias, diferente das décadas de 1970 e 1980, e desde que Israel construiu alianças com a maioria dos países árabes, não há nenhuma pressão real árabe ou de outra natureza sobre os países latino-americanos atualmente para cortar os laços com Israel ou impor sanções ao país.
Nas décadas de 1970 e 1980, os países árabes tinham grande influência sobre os regimes latino-americanos porque queriam empréstimos e investimentos árabes, enquanto muitos dos países ocidentais boicotaram os regimes por causa de suas violações aos direitos humanos. Como eu disse, hoje em dia, as condenações que alguns dos governos progressistas da América Latina fazem às ações de Israel em Gaza não são sérias e se destinam principalmente às necessidades políticas internas.
Portanto, para resumir, hoje o Estado de Israel, a América Latina e o Oriente Médio são menos importantes um para o outro. É claro que aqueles que se preocupam com os direitos humanos e com a liberdade e a democracia devem se preocupar com o que está acontecendo em todas essas áreas do mundo.