Quarta-feira, 29 de julho de 1936. Faltam três dias para a inauguração dos Jogos Olímpicos de Berlim e os atletas continuam chegando à capital alemã. A pista e o campo de aquecimento são um formigueiro – o gigante Akilles Jarvinen da Finlândia lança o disco a vertiginosas distâncias com nada mais que um giro rápido. Luigi Beccali, o corredor italiano de meio-fundo, dá rápidas voltas na pista e tem de gritar para deslocar torcedores que se reúnem em volta do barreirista norte-americano Forrest Towns.
Na pista de salto em distância, fotógrafos cercam a estrela dos Jogos. Jesse Owens era o detentor do recorde mundial dos 100 metros, 200 metros e salto em distância e favorito ao ouro. Devido à voragem política que cercava os Jogos, os olhos do mundo se voltaram para o modesto e charmoso jovem de 22 anos do Alabama. Um dos fotógrafos pediu para sacar uma foto com ele em ação. Corre poucos metros pela pista de salto, bate firme na tábua e de maneira pouco formal executa o salto. Os fotógrafos batem seus instantâneos e sorriem. Levantando-se da areia, Owens fixa o olhar nos buracos que criou. Tinha saltado 7m78. A distância seria suficiente para conquistar o bronze na final, seis dias mais tarde.
Era uma pequena amostra das façanhas atléticas de Owens, frequentemente amortecidas pela importância política acoplada a elas. Owens passou sete dias nos Jogos de Berlim e o que se viu só viria a ser igualado 48 anos depois por Carl Lewis nos Jogos de Los Angeles (1984). Nenhum atleta marcou tanto um evento olímpico quanto ele em 1936. A história consagrou os Jogos de 1936 como os Jogos de Jesse Owens.
Jesse, bisneto de escravo, passou boa parte de sua infância trabalhando nos campos de algodão e como engraxate em Danville, Alabama. Suas conquistas no atletismo enquanto cursava o colégio em Fairmount – ganhou 75 das 79 provas de que participou – propiciaram-lhe em 1933 uma vaga na Universidade de Ohio, onde combinava as aulas com um emprego de ascensorista num edifício de escritórios, em que trabalhava das 17h00 à 01h00.
Dois anos mais tarde, em 1935, chamou a atenção mundial com uma série de tempos e distâncias que eclipsariam as marcas de um ano depois. No campeonato universitário Big Ten Conference correu as 100 jardas (91,44 metros) em 9,4 segundos, igualando o recorde mundial. Superou o recorde mundial do salto em distância com 8,13 metros, marca que permaneceria imbatível por mais de 25 anos. Estabeleceu também novo recorde mundial para as 220 jardas (201,18 metros).
No verão de 1936, sua aura de invencibilidade foi de certa forma empalidecida. Foi derrotado por Eulace Peacock nas 100 jardas nos preparativos da equipe norte-americana para os Jogos. Peacock acabou ficando de fora da competição em Berlim devido a uma contusão.
Porém, em 03 de agosto de 1936, nos 100 metros rasos, haveria um só vencedor. Passou pelas séries, igualando o recorde olímpico numa delas; quebrou o recorde olímpico (com ajuda do vento) nas quartas de final; correu o seu pior tempo ao vencer a semifinal. Na final, Erich Borchmeyer, a grande esperança germânica, terminou em 5º, enquanto Owens arrancava célere para a sua medalha de ouro. “Mirava a fita de chegada e sabia que 10 segundos seriam o clímax de um trabalho de oito anos. Um erro poderia pôr abaixo esses oito anos. Por que, então, deveria me preocupar com Hitler?”
O recorde mundial que Jesse buscava na final não pôde ser homologado devido ao vento a favor, acima do máximo permitido. Todavia, isso não alterou o fato de que era o maior velocista de todas as Olimpíadas. Não apenas o mais rápido, mas também o mais elegante. Jamais tinha havido um corredor que mostrasse tão poucos sinais de esforço. Parecia fluir pela pista como água. A multidão em Berlim ficou cativada por ele; seu nome era aclamado assim que anunciado antes da prova e, assim que terminava uma disputa, a caminho do vestiário, era continuamente parado pelos espectadores que queriam fotografá-lo. Recebia as homenagens com a mais completa e cavalheiresca modéstia.
Programada para o dia seguinte, a prova do salto em distância trouxe dificuldades inesperadas para Jesse. Na sessão de classificação da manhã, queimara dois saltos, deixando-o com uma única chance para necessariamente superar a distância mínima de 7,15 metros, o que em condições normais alcançaria folgadamente. Foi quando o alemão Luz Long, a encarnação do corpo ideal ariano e principal concorrente de Owens para o ouro, se aproximou do norte-americano e sugeriu que recuasse em 30 centímetros a marca do início da corrida, de forma a não queimar o salto. Owens assentiu, garantindo sua ida para a final.
Na final, Owens assumiu a liderança com um salto de 7,74m na primeira tentativa. Na penúltima e quinta rodada, porém, Long passa à frente com 7,87m. Owens responde imediatamente em sensacional estilo com 7,94m, e no último salto marca 8,06m. Luz foi o primeiro a cumprimentá-lo e deram uma volta olímpica juntos enquanto os assistentes se levantavam para saudá-los. “Foi uma atitude de muita coragem de Luz de demonstrar ser meu amigo diante de Hitler”, disse Owens anos depois. “Você poderia derreter todas as medalhas e taças que ganhei e elas não serviriam nem mesmo de banho à amizade de 24 quilates que senti por Luz naquele momento”.
Não houve tal drama no dia seguinte na final dos 200 metros, que Owens ganhou com 20,7 segundos, novo recorde olímpico, quatro metros à frente do segundo colocado. Contudo, no revezamento 4×100 viveu-se uma tensão de diferente espécie. A prova final teve lugar quatro dias depois e era provável que Owens acrescentasse uma quarta medalha de ouro a sua coleção. Owens e Ralph Metcalfe, medalha de prata nos 100 metros, deveriam correr a final. No entanto, como é habitual nos revezamentos, os reservas estavam escalados para as séries. Qualquer atleta que compita nas provas classificatórias está apto a disputar a medalha. Entretanto, Marty Glickman e Sam Stoller, que eram judeus, deixaram de ser escalados pelos dirigentes da delegação dos Estados Unidos no último minuto e Owens e Metcalfe correram as séries em seus lugares.
Muitos mitos rondam Owens e os Jogos de 1936. Teria Hitler ficado tão enraivecido com a vitória de Jesse no salto em distância que se retirara do estádio às pressas? Teria Hitler se recusado a entregar a medalha de ouro após sua vitória nos 100 metros?
Essas questões somam-se à mística desses Jogos, mas afastam-se do ponto central. A interpretação padrão dos êxitos de Owens é que ele provou que a ideia nazista da superioridade racial ariana era um absurdo. Hitler, embora irritado, mostrou-se algo indiferente aos triunfos afro-americanos nos Jogos. “É claro”, disse aos seus assistentes, “conquistaram os ouros porque são essencialmente animais”, fisicamente mais fortes que os “brancos civilizados”. “Cada vitória germânica – e houve um surpreendente número delas –, deixava o Führer feliz, mas ele ficou muito incomodado com a série de triunfos de Jesse Owens”, disse o arquiteto de Hitler, Albert Speer. “‘Pessoas cujos antecedentes vêm da floresta são primitivos’, dizia Hitler com desdém. Seu físico é mais forte que o dos ‘brancos civilizados’, portanto eles deveriam ser excluídos das futuras competições.”
Owens passou os Jogos sendo rodeado nas ruas pelos fãs germânicos. Ficou hospedado no mesmo hotel que os atletas brancos, privilégio que lhe havia sido negado em seu próprio país. Em seu triunfante retorno aos Estados Unidos, foi recebido em desfile com papel picado. Naquela noite, teve lugar no hotel Waldorf Astoria de Nova York uma recepção em sua homenagem. Na condição de negro, Owens não teria permissão de passar pelas portas principais e seria obrigado a ir à cerimônia utilizando o elevador de serviço.
“Quando voltei ao meu país, depois de todos aqueles comentários sobre o racismo nazista, eu não pude viajar na parte da frente dos ônibus”, disse anos depois. “Tinha de entrar pela porta traseira. Não podia morar onde quisesse. Não fui convidado para apertar a mão de Hitler, porém tampouco fui convidado à Casa Branca para apertar a mão do presidente de meu país.” Franklin Delano Roosevelt sequer chegou a enviar um telegrama a Owens.
Passados seis meses, Owens tornou-se profissional, encerrando sua carreira de atleta segundo as normas então vigentes da União Atlética Amadora dos EUA. Com o dinheiro que ganhou após os Jogos comprou uma casa para seus pais e um automóvel para seu treinador, mas pouco demorou para que entrasse em dificuldades financeiras. Tornou-se uma espécie de artista circense, correndo contra cavalos e galgos. Somente nos anos 1950 é que Owens encontrou certa segurança financeira como representante de várias companhias. ”As pessoas me diziam que era degradante para um campeão olímpico correr contra um cavalo”, disse. “Mas o que eu poderia fazer? Tinha quatro medalhas de ouro, mas eu não podia comê-las.”
Finalmente, Owens foi reconhecido como a figura inspiradora que realmente era, condecorado com a Medalha da Liberdade em 1976, a mais alta honraria civil dos Estados Unidos. E merecidamente, uma vez que entrou no ninho dos nazistas e emergiu com quatro medalhas de ouro em torno de seu pescoço.
*A série Grandes Momentos Olímpicos foi concebida e escrita no ano de 2015 pelo advogado e jornalista Max Altman, falecido em 2016.