Assim como saudade em português, “sisu” é uma daquelas palavras que não tem tradução em outros idiomas. Em finlandês, é referência a uma força de vontade interior que compreende determinação, coragem e perseverança. A expressão é perfeita para descrever as qualidades de Paavo Nurmi, o “Finlandês Voador”, considerado por muitos especialistas como o maior corredor de todos os tempos.
Com participação em três Jogos Olímpicos – Antuérpia, em 1920; Paris, em 1924; e Amsterdã, em 1928 -, Nurmi ganhou um total de 12 medalhas, 9 de ouro e 3 de prata. Conhecido no mundo inteiro, o corredor, com sua rígida disciplina, era a personificação do orgulho nacional da Finlândia recém-independente.
“Havia algo de crueldade e severidade a seu respeito, mas ele conquistou o mundo por meios limpos: com uma vontade sobrenatural”, afirmou, em 1935, Martti Jukola, jornalista esportivo finlandês.
O mais velho de cinco irmãos, Paavo Johannes Nurmi nasceu em 13 de junho de 1897 na cidade de Turku, no sudoeste da Finlândia. Cresceu comendo pão preto e peixe ressecado. Alimentos frescos e frutas só em raras ocasiões. Para ir à escola tinha de caminhar muitos quilômetros, todos os dias. No inverno, o trajeto era feito em cima de um esqui sobre a neve.Nurmi deixou de frequentar a escola muito cedo, aos 12 anos, por conta da morte de seu pai. Seu primeiro emprego foi como entregador de uma padaria de sua cidade natal. O esportista ainda seria operário em uma metalúrgica antes de, em 1919, ser alistado no serviço militar.
No Exército, sua companhia realizou, certa vez, uma marcha forçada de 20 quilômetros, com todo o equipamento: fuzil, cinturão com munição, mochila cheia de areia. Havia prêmios para os vencedores. Muitos começavam a marcha com passos vivos, mas poucos sustentavam o ritmo por um bom tempo. Nurmi correu todo o trajeto.
Nurmi teve um filho, Matti, do qual nunca foi muito próximo. Casou-se, em 1932, com uma moça de sociedade, filha de dono de moinhos. A união durou menos de dois anos, em parte por um estranho desapontamento com o tamanho dos pés de seu recém-nascido filho. “Paavo mediu-o e disse não estar satisfeito”, explicou sua mulher após a separação. “Queria que o menino fosse um corredor”.
Paradoxalmente, as características que dificultavam Nurmi de ter uma vida familiar comum fizeram dele um homem muito bem sucedido como atleta. Metódico e à frente de seu tempo, completava suas corridas sempre com um cronômetro à mão, até mesmo nas finais olímpicas, para garantir a si mesmo que o melhor rendimento estava sendo alcançado. Em uma época onde os corredores tinham como estratégia começar a corrida com bastante intensidade, diminuir a velocidade durante a maior parte do trajeto e, no final, dar um “sprint” de 200 metros, Nurmi foi revolucionário. Com sua estratégia, completava volta após volta com a mesma passada.
O finlandês elevou a quantidade e qualidade de duração do treinamento a níveis que nenhum de seus adversários da época poderia igualar. Além das vitórias olímpicas, Nurmi conseguiu quebrar 25 recordes mundiais nas distâncias de 1.500 a 20.000 metros, em uma carreira atlética mantida em alto nível por cerca de 12 anos.
Paavo Nurmi se transformou em uma espécie de herói do esporte. Em uma entrevista, o corredor tchecoslovaco Emil Zatopek, único homem a vencer os 5000 metros, 10000 metros e a maratona em uma mesma edição de Jogos Olímpicos (Helsinque, 1952), revelou que em seus momentos mais duros de treinamento gritava: “Eu sou Nurmi, eu sou Nurmi!”.
A estreia do Finlândes Voador em Jogos Olímpicos, no entanto, foi um pouco decepcionante. Na Antuérpia, em 1920, o francês Joseph Guillemot superou-o na última volta para ganhar os 5.000 metros. Nurmi reagiu de forma impressionante, conquistando o ouro nos 10.000 metros, no cross-country individual e no cross-country por equipe.
Sua performance nos Jogos Olímpicos de Paris, 1924, foi tão assombrosa que beirou o impossível. A programação das competições não ajudava. As finais de duas de suas provas – 5.000 e 1.500 metros – estavam marcadas para a mesma tarde, com distância de 90 minutos entre uma e outra. Três semanas antes, no estádio Elaintarha, em Helsinque, destroçara o recorde mundial dos 1.500, vigente havia 7 anos, e menos de uma hora depois quebrou seu próprio recorde mundial dos 5.000 metros em 7,2 segundos.
Na terça-feira, 8 de julho, venceu uma das series dos 5.000 metros sem maior esforço. No dia seguinte ganhou sua série de 1.500 metros como quis. Na quinta-feira, 10 de julho, conquistou o ouro em ambas as provas, uma após a outra, sem ter sido pressionado por adversários. Nos 1.500 metros deixou de bater o recorde mundial por 1 segundo para em seguida correr e ganhar os 5.000 metros sem precisar de empenho maior. Essas 4 corridas e dois ouros em três dias não pararia por aí: na sexta-feira, 11, competiu nas séries de cross-country por equipe.
No sábado, 12, correu e venceu os 10.000 metros do cross-country individual, uma prova que se mostrou tão apavorante que foi imediata e permanentemente eliminada da programação olímpica. “Foi um dia de calor tão intenso, que, dos 42 corredores que iniciaram a prova, menos de uma dúzia a completou. Os demais caíram inconscientes pelo percurso, dando trabalho às ambulâncias que os acompanhavam”, relataram os jornais da época.
Nurmi completou sua sexta corrida em 5 dias, cruzando a linha de chegada um minuto e meio à frente do mais próximo competidor. No domingo, 13, correu a final do cross-country por equipe, chegando à frente com uma margem de 90 metros, aparentemente sem esforço. A prova estabeleceu um novo recorde olímpico.
O maior rival de Nurmi foi Ville Ritola, um compatriota que vivia nos Estados Unidos. Quando Ritola foi escolhido como o único representante da Finlândia a correr os 10.000 metros em Paris, Nurmi ficou tão furioso que resolveu correr na pista de aquecimento próxima do estádio a mesma distância no mesmo horário. Ritola conquistou o ouro na competição oficial, estabelecendo novo recorde mundial. Do lado de fora, Nurmi teria terminado à frente. Quando os finlandeses se enfrentaram diretamente nos 5.000 metros e no cross-country individual, Ritola teve de se contentar com a medalha de prata.
Olýmpics.org
A rivalidade com Ritola foi retomada no primeiro dia dos Jogos Olímpicos de Amsterdã, 1928, quando Nurmi venceu os 10.000 metros, batendo o recorde olímpico de seu compatriota por mais de 6 segundos. Esta foi sua última grande glória em Jogos Olímpicos. Ritola bateu-o nos 5.000 metros. Então nos 3.000 metros steeplechase – um evento pouco apropriado a Nurmi, tanto que a multidão caiu em gargalhada quando caiu de boca no tanque de água – novamente chegou em segundo, atrás de Toivo Loukola, outro finlandês.
Depois das derrotas, Nurmi decidiu se preparar para a maratona e acabou descobrindo que esta seria a sua melhor prova de todas. Alguns de seus tempos em disputas preparatórias para os Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1932, pareciam quase inacreditáveis. O Comitê Olímpico Internacional, no entanto, frustrou suas expectativas. Acusou-o de ter recebido muito dinheiro em suas turnês pelos Estados Unidos, o que faziam dele um atleta profissional e impediam sua participação nas Olímpiadas.
Já no pós-guerra, os Jogos da 15ª Olimpíada foram abertos em Helsinque, em 19 de julho de 1952. A identidade do corredor, portando a tocha olímpica e que iria acender a pira, fora mantida em segredo. Quando o placar elétrico do Estádio Olímpico exibiu o texto: “A tocha olímpica está sendo trazida por Paavo Nurmi”, o público, a princípio, emudeceu. Quando Nurmi entra no estádio, 70 mil pessoas explodem em entusiasmo e lágrimas. Para chegar ali, ele havia se recuperado de trombose coronariana no final dos anos 1950.
Após os Jogos Olímpicos de Paris, o governo finlandês encomendou uma estátua de Nurmi ao melhor escultor do país, Wäinö Aaltonen. Em 1952, nos Jogos Olímpicos de Helsinque, uma cópia da estátua foi erigida diante do Estádio Olímpico. Em 1983 a estátua original foi transferida do Museu Nacional de Arte para a Faculdade de Educação Física da Universidade de Jyväskylä. Em 1994, outra cópia foi enviada ao museu do Comitê Olímpico Internacional em Lausanne, Suíça.
Paavo Nurmi morreu em Helsinque em 2 de outubro de 1973, aos 76 anos. Antes de ser enterrado em sua cidade natal, o Finlandês Voador teve um funeral com homenagens e honras de Estado.
*A série Grandes Momentos Olímpicos foi concebida e escrita no ano de 2015 pelo advogado e jornalista Max Altman, falecido em 2016.