O canadense Ben Johnson era conhecido pela potência de sua saída; o norte-americano Carl Lewis, pela velocidade de sua chegada. Foi o ritmo desenvolvido por Lewis nos últimos 50 metros que lhe permitiu derrotar Johnson em oito das nove disputas que travaram entre 1980 e 1985. Porém, em 1986, os fatos começaram a mudar e, quando competiram em Roma no Campeonato Mundial de Atletismo de 1987, Johnson havia ganhado 5 das 6 corridas precedentes. No Stadio Olimpico, Johnson reagiu ao tiro de partida com inacreditável 0.129 segundo. Na altura, já sem a vantagem da segunda metade da prova, Lewis, que arrancara com 0.193 segundo, foi batido antes de tocar a pista com sua primeira passada.
Johnson encarava a final olímpica dos 100 metros nos Jogos Olímpicos de Seul, 1988, com otimismo. O tempo de reação dele e de Lewis estavam próximos: 0.132 e 0.136, respectivamente. Fatiando a corrida em 10 segmentos de 10 metros, o campeão de 1984 só correu mais rápido que o rival entre os 80 e 90 metros e ainda assim com um centésimo de segundo de diferença. Johnson havia produzido a maior performance na história da velocidade pura, cravando 9,79 segundos para prová-lo.
Pela primeira vez, quatro homens terminaram a mesma corrida abaixo de 10 segundos, pelo que os comentaristas a consideraram “a maior corrida de velocidade da história”. O Canadá todo celebrou e o gosto da vitória foi ainda maior por ter sido sobre Carl Lewis, visto amplamente como a encarnação viva da arrogância norte-americana. O jornal Toronto Star estampou em letras garrafais no dia seguinte: “Ben Johnson – um tesouro nacional”.
Na entrevista à imprensa, Johnson mostrou-se excessivamente presunçoso: “Quero dizer que meu nome é Benjamin Sinclair Johnson Jr, e que meu recorde irá perdurar por 50, talvez 100 anos”, começou. E ainda que alguém o batesse antes desses prazos, ele não se mostraria preocupado. “Você pode superar um recorde mundial. Mas uma medalha de ouro, é algo que ninguém vai tirar de você”. Esteve errado nos dois casos: a marca foi suprimida em 48 horas, levando consigo a medalha de ouro.
No dia seguinte pela manhã, no Centro Olímpico de Controle de Doping, o exame da urina de Johnson deu positivo para o proibido esteroide estanozolol. Incontinente, a “maior corrida de velocidade da história” passava a ser conhecida simplesmente como a mais suja, como se constataria nos desdobramentos.
O teste positivo foi um enorme choque para o mundo, mas nem tanto no meio desportivo. Em sua autobiografia, Lewis relembrava: “Foi difícil concentrar-me quando vi Ben Johnson na pista. Notei que seus olhos estavam bem amarelados, sinal de uso de esteroide. ‘De novo esse cara está aprontando comigo’, disse para mim mesmo”.
As notícias sobre o teste positivo varreram o Canadá de vergonha e indignação. O jornal The Ottawa Citizen abriu a manchete: “Muito obrigado, seu desgraçado.” O nível da obsessão com essa história era tal que, de 70 matérias sobre os Jogos de Seul publicadas pelo Toronto Star, nos três dias subsequentes 79% eram sobre Johnson. Se sua vitória foi rápida e enfática, o mesmo ocorreu com sua destruição.
Nos dias que se seguiram à publicação do resultado, Johnson insistiu que era totalmente inocente. Regressou incontinente ao Canadá, onde numa coletiva de imprensa afirmou que “nunca conscientemente tomou drogas ilegais”. Todavia, esta alegação não perdurou. No ano seguinte admitiu ter usado esteroides durante oito anos. O que jamais admitiu foi ter usado aquele que o destruiu.
O medico particular de Johnson, Dr. Jamie Astaphan, foi o encarregado de administrar seu regime à base de esteroide. Relatou que o atleta tomou estanozolol em uma ocasião em 1987 e isso lhe trouxe “violentos espasmos musculares”. Em decorrência, Astaphan não acreditava que Johnson conscientemente teria tomado a droga novamente, o que poderia pôr fim a sua carreira, e negou enfaticamente ter-lhe fornecido a droga outra vez.
“Não seria tão estúpido de tomar algo na véspera”
Johnson insistiu que seu teste não poderia de forma alguma ter dado positivo. “Parei de tomar esteroide seis semanas antes dos Jogos”, afirmou. “Eu não seria tão estúpido a ponto de tomar algo às vésperas da final olímpica.” É possível acreditar nessas palavras. A despeito do uso contínuo de esteroide, Johnson passou por 19 exames negativos de doping entre 1986 e 1988, por deixar passar tempo suficiente entre a última dose e a corrida seguinte a fim de que o organismo eliminasse traços da droga.
Como então o estanozolol pôde ser detectado na amostra de urina em Seul? Seu treinador, Charlie Francis, acreditou que “houve algum tipo de sabotagem no laboratório”. E quem seria o responsável: “Não tenho como saber. Só posso dizer que foram atrás de Ben nos Jogos de Seul, mas também algo foi orquestrado contra ele no campeonato mundial de atletismo de Roma [em 1987].
Johnson insistentemente acusou a presença de um misterioso homem no laboratório de testes, onde o atleta teve de beber 10 copos de cerveja de baixo teor alcoólico para produzir uma amostra de urina. “Nesse laboratório, era um cara que me passava os copos”, disse. “Quando terminei de beber um dos copos, no fundo havia uma fétida substância amarela viscosa. Um porta-voz do Comitê Olímpico confirmou a presença de uma pessoa não autorizada na área de testes.”
Em 2010, Johnson publicou um livro em que revela o nome da misteriosa pessoa, Andre Jackson, segundo ele, amigo de Carl Lewis. Em sua autobiografia, publicada em 1990, Lewis admitiu que Jackson tinha estado no laboratório de testes. “Nunca ficava surpreso quando Andre aparecia, não importa onde fosse, circulando, fazendo o que queria, estando em locais que não lhe diziam respeito”, escreveu. “Algumas pessoas têm essa mania”.
Há quatro anos, a Associated Press perguntou a Jackson, que desde meados de 1980 havia feito fortuna na indústria de diamantes, a propósito das alegações de Ben. Jackson esquivou-se: “Perdi interesse em responder ou replicar tais afirmações, particularmente quando na atualidade isso não beneficia a ninguém”, escreveu. “Em conclusão, essa conversa já chegara ao máximo e obviamente toquei minha vida em frente, de modo que agora eu encorajaria Ben a continuar a trabalhar e controlar seu destino”.
Aquele livro de Johnson, “Seoul to Soul”, editado pelo seu ‘conselheiro espiritual’, Bryan Farnum, um homem que se jactava de possuir “um dom espiritual bastante forte”, faz revelações como a que Ben era a reencarnação do faraó egípcio Khufu, famoso pela construção da maior e mais antiga das pirâmides, a de Gizé, e que Khufu havia sido objeto de um complô para envenená-lo arquitetado por pré-encarnações de Jackson e Lewis.
Inquérito Dubin
No final de 1988, com o Canadá ainda chocado com a caída em desgraça de Johnson, o governo canadense criou uma comissão com o elegante título de Comissão de Inquérito de Uso de Drogas e de Práticas Proibidas Destinadas a Incrementar a Performance Atlética, que se tornaria conhecida como Inquérito Dubin, nome do juiz que a presidiu. Interrogou 119 testemunhas, produzindo 14.817 páginas de testemunhos. Concluiu que a alegação de cerveja suspeita era extremamente improvável e que a explicação mais plausível para o teste positivo foi simplesmente que o frasco de esteroides havia sido erradamente etiquetado, levando Johnson a injetar-se estanozolol, que dura 28 dias para ser eliminado pelo organismo em vez do esteroide escolhido, furazabol, que dura apenas 14 dias. As recomendações do Relatório Dubin levaram à prática a se realizarem exames de doping fora das competições.
Assista à transmissão da prova pelo canal canandense CBC (em inglês):
A única coisa que não se poderá saber é se Johnson teria conquistado o ouro sem as drogas. Parece improvável. O técnico Francis lembrava dele como um “animalzinho raquítico, pesando 42 quilos” quando o conheceu pela primeira vez em 1977. Ben tinha 15 anos e era recém-imigrado da Jamaica. Em seu depoimento ao Inquérito Dubin, Johnson falou de seu envolvimento com as drogas em 1980. “Charlie chamou-me de lado e disse que o mundo todo estava usando daquelas drogas e que o único jeito de melhorar era de também usá-las”.
Francis evidentemente sabia que o abuso de esteroide estava disseminado entre os corredores de velocidade e, a se julgar pela final dos 100 metros dos Jogos de Seul, ele provavelmente estava certo. Lewis, que acabou ficando com a medalha de ouro com a desclassificação de Johnson e também conquistou a do salto em distância, também havia testado para os estimulantes proibidos pseudoefedrina, efedrina e fenilpropanolamina nas eliminatórias norte-americanas um mês antes.
O Comitê Olímpico dos Estados Unidos não informou do resultado ao Comitê Olímpico Internacional, alegando que uma suposta longa conspiração havia queimado mais de 100 testes positivos. Quando o escândalo se tornou público, Lewis defendeu a decisão de não puni-lo: “Havia centenas de atletas nas mesmas condições e que não foram punidos”.
Mais doping
O britânico Linford Christie, que ganhou a medalha de bronze e foi guindado à de prata, testou positivo em Seul para um estimulante proibido, alegando ter apenas tomado uma taça de chá-ginseng, o que foi aceito pela comissão antidoping. Entretanto, testou positivo em 1999 para o esteroide anabólico nandrolona.
Dennis Mitchell, que chegou em quarto, testou positivo para níveis excessivos de testosterona em 1998. Pôs a culpa no fato de que teve sexo com sua mulher pelo menos 4 vezes naquele dia. “Era seu aniversário e a moça merecia esse presente”. O canadense Desai Williams, que chegou em sexto, admitiu ao Inquérito Dubin que usou o estanozolol. O jamaicano Ray Stewart, que chegou em oitavo e último, tornou-se treinador e foi banido perpetuamente do atletismo em 2010 por fornecer drogas aos seus atletas para melhorar o desempenho.
Dos finalistas de Seul, apenas o norte-americano Calvin Smith – quarto colocado e que passou a receber a medalha de bronze – e o brasileiro Robson Caetano, que chegou em quinto, jamais estiveram envolvidos com doping.
Quanto a Ben Johnson, sua primeira corrida após Seul ocorreu no mês seguinte, contra dois cavalos e um ‘stock car’ numa pista de terra em Charlottetown, Port Edward Island. Chegou em terceiro após o carro ter atolado na lama. Retornou ao atletismo depois de cumprir 2 anos de suspensão, tendo competido nos Jogos Olímpicos de Barcelona, 1992, quando terminou em último em sua semifinal, cerca de um segundo mais lento que seu tempo em Seul.
Em janeiro de 1993, um exame deu positivo por excesso de testosterona e dessa vez foi banido perpetuamente do esporte. “Eu não fiquei terrivelmente surpreso”, disse Lewis. “Ben teria de recomeçar correndo melhor ou correr atrás de algum outro emprego. Se usou drogas, fico feliz que ele tenha sido apanhado”.
A tragédia, como em Seul, não foi que Bem Johnson tenha sido apanhado, mas o número de atletas que não o foram.
*A série Grandes Momentos Olímpicos foi concebida e escrita no ano de 2015 pelo advogado e jornalista Max Altman, falecido em 2016.