Texto publicado em O Estado de S.Paulo, em 13.set.2001
O best seller Tom Clancy, autor de Jogos Patrióticos e Perigo Real e Imediato, escreveu um livro em que um grupo de terroristas japoneses lança um Boeing 747 sobre o Capitólio, matando o presidente dos Estados Unidos e os parlamentares. Principal representante do chamado tecno-thriller, ele, no entanto, se nega a aceitar que tenha, em Dívida de Honra, de 1994, sugerido ou ao menos previsto os atentados de 11 de setembro em Nova York e Washington. “A realidade está sempre à frente da ficção”, disse, por telefone, de Maryland, em 12 de setembro de 2001.
“Não sei por que estão ligando para mim; não sou um especialista”, despistou Clancy, que dá palestras para a CIA e o FBI e que se transformou em leitura obrigatória da cúpula do governo republicano de Ronald Reagan, depois que o presidente elogiou Caçada ao Outubro Vermelho durante uma entrevista coletiva. Daquele governo, pelo menos uma figura de destaque continua a dar ordens em Washington: o general Collin Powell.
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Clancy afirmou que os ataques do 11 de Setembro são a maior tragédia que já viu e que não teria muito mais o que acrescentar. Sempre com frases curtas, afirmou que não pretende utilizar os fatos em um romance: ”Eu não usaria, talvez outros possam usar; simplesmente não considero apropriado.” Também não quis comentar os artigos escritos por Gore Vidal sobre o atentado de Oklahoma: “Não posso falar por ele.” “Definitivamente, ficção não tem absolutamente nada a ver com a realidade”, continuou.
Romances de espionagem sobre terrorismo se transformaram numa das maiores fórmulas de sucesso da indústria editorial. Em volumes de muitas páginas (Ordens do Executivo tem 1.022 na versão brasileira), costumam ser absolutamente detalhistas, narrando não apenas cada pequeno passo dos terroristas, mas também cada movimento dos agentes do governo para persegui-los (claro que o tema é tratado por autores mais ambiciosos, nem sempre com bom resultado: o protagonista de Leviatã, de Paul Auster, é um terrorista norte-americano que põe uma bomba na estátua da Liberdade. Este, porém, não é um romance de espionagem, mas uma obra em que a grande questão é entender as motivações psicológicas do personagem).
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O escritor Tom Clancy, autor de ‘Dívida de Honra’
É longa a relação dos escritores do gênero com os serviços secretos. Em 1970, o jornalista Frederick Forsyth estava desempregado (depois de cobrir a guerra de Biafra para a agência de notícias Reuters) quando decidiu escrever um livro sobre um atentado frustrado contra o general e presidente francês Charles De Gaulle. Nascia O Dia do Chacal. Em 1972, o próprio escritor financiou e participou da organização de uma tentativa de golpe de Estado para depor o presidente Macías Nguema da Guiné Equatorial. Segundo o jornal Sunday Times, o objetivo era criar uma nação para abrigar os refugiados de Biafra. Oito anos depois do fim da guerra, ele publicou um livro sobre o conflito (não sobre o golpe), A História de Biafra, também lançado no Brasil.
O inglês John Le Carré, autor de inúmeros livros de espionagem sobre a Guerra Fria, dos quais o mais famoso é O Espião Que Saiu do Frio (1963), também trabalhou como agente de serviços secretos britânicos até 1964. Ele reconheceu, em 1993, que recebeu “treinamento para matar” – mas nunca usou, porque era “contra a violência”. Várias vezes, Forsyth descreveu o trabalho de escritor de livros de espionagem como o de um repórter. Declarou inclusive ter fontes entre os terroristas, embora não recorresse a elas com tanta frequência. Já Robert Ludlum, outro campeão de vendas e autor de As Ilusões do Escorpião, diz que não tem relações com serviços secretos e que teve três colegas de faculdade que entraram para a CIA, mas ele nunca lhe passaram informação alguma.
Autores desses livros costumam, portanto, estar muito bem informados sobre as possibilidades e capacidades técnicas tanto de terroristas quanto dos governos. Se governantes como Reagan dão atenção a eles, não há razão para acreditar que os terroristas também não os leiam e utilizem suas informações e sugestões.
Mas, seguramente, essas obras servem mais aos governos que a seus contestadores. Na guerra ideológica, estão geralmente do lado do Estado, mostrando que, mesmo nas crises, no final ele se reorganiza (em geral, depois de revidar o ataque). Também costumam justificar a vigilância sobre a população e os gastos militares como males necessários para prevenir a ação de grupos radicais.
Durante a Guerra Fria, a rivalidade entre União Soviética e Estados Unidos foi o principal objeto dessas obras. Mesmo livros como o O Dia do Chacal, em que um indivíduo é conduz a trama, e Cães de Guerra, também de Forsyth, sobre mercenários, questões ideológicas compunham o enredo. Com a perestroika e o desmoronamento do império soviético, a partir da segunda metade dos anos 80, os romances de espionagem passaram a ter como mote o terrorismo islâmico e o tráfico de drogas – colocando árabes especialmente (mas também latino-americanos e muçulmanos em geral) na posição de grandes ameaças à estabilidade do mundo. No período em que a economia do Japão crescia num ritmo mais veloz que a norte-americana, também os japoneses passaram a ser uma ameaça, como mostra o romance de Clancy.
De um modo geral, pode-se dizer que os presidentes das grandes nações, especialmente dos Estados Unidos, são as principais vítimas dos grupos terroristas nos romances. Mas a ameaça pode ser ainda maior (e mais “realista”): Dominique Lapierre e Larry Collins publicaram um livro em 1984 (O Quinto Cavaleiro) sobre uma ação para evitar a explosão de uma bomba atômica em Nova York. O atentado seria orquestrado pelo fantasma de plantão da época: o coronel líbio Mouammar Kadhafi.
Pensando mais concretamente, mas sem esquecer que se trata de ficção, convém estar atento ao que ocorrerá nos próximos dias nos EUA. No romance de Clancy, além de lançar um avião sobre o Capitólio, também é disseminado, no interior do país, o vírus ebola, dessa vez pelos velhos inimigos iranianos. A essa altura dos fatos, torce-se apenas para que pelo menos metade da história não tenha ultrapassado a realidade.