Trecho do livro Quatro décadas com Lula, de Clara Ant, publicado pela Autêntica Editora em agosto de 2022 (p. 282-285).
Salário mínimo
“Vocês querem falar com Lula às 3 horas da madrugada?”, Dona Marisa indagou ao telefone.
“Sim”, respondeu o então ministro do Trabalho, Luiz Marinho, que informou eufórico ao presidente Lula sobre o acordo selado com as centrais sindicais em 2006¹. O centro do acordo entre as centrais foi cobrar do governo e do Congresso uma regra de valorização permanente do salário mínimo² até que se alcançasse o valor estabelecido desde 1936 pela Lei n.º 185 – ou seja, uma remuneração cujo valor garantisse a sobrevivência de trabalhadores urbanos e rurais. Isso foi reiterado sucessivamente pela CLT em 1943, pela Constituição de 1946 e, finalmente, pela de 1988, que incluiu na lei a sobrevivência da família, e não apenas do trabalhador.
O que aconteceu de 1936 a 2005 que impediu o cumprimento da letra da lei? Como poderiam as famílias de trabalhadores sobreviver sem esse mínimo? Causa espanto e revolta saber que, durante quase setenta anos, o valor mínimo para garantir uma vida digna para o trabalhador e, a partir de 1988, também para sua família, sofreu apenas pequenos reajustes e em raras e esporádicas ocasiões. Nos governos Sarney e Collor, apesar de fortes oscilações, o valor do salário mínimo caiu. No governo Fernando Henrique Cardoso, houve uma lenta e constante recuperação do valor, que em 1995 permitia comprar 1,02 cesta básica. Lula assume o governo com o salário mínimo já definido para a compra de 1,38 cesta básica e termina o mandato com o valor equivalente a 2,06 cestas. Dilma segue no mesmo rumo. Foram os anos de maior valorização do salário mínimo, o que se traduz em maior poder de compra e maior aumento real. No total, de 2003 a 2016, houve um reajuste de 77,1%.
A valorização do salário mínimo foi um dos fortes compromissos do presidente Lula desde sua primeira campanha eleitoral, além de uma reivindicação histórica dos trabalhadores. O governo federal deu início à política de recuperação do salário mínimo já em 2003, e em 2006 chegou a um acordo com as centrais sindicais quanto à fórmula para garantir a valorização do mínimo nos anos seguintes. Lula e Dilma seguiram-na antes mesmo da aprovação da lei, que entrou em vigor em 2012.
Como forma de garantir um ganho real e o fortalecimento do mercado interno, os reajustes do salário mínimo passaram a incorporar a inflação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), medido pelo IBGE, e a variação de crescimento real do PIB brasileiro de dois anos antes da data-base. Logo, se o país cresce, cresce também o poder de compra do salário mínimo. Simples assim.
Vale registrar que a política de valorização do salário mínimo não incide apenas na remuneração de trabalhadores assalariados. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) aponta que, em 2008, os reajustes impactaram diretamente cerca de 46,1 milhões de brasileiros, incluídos aí os beneficiários do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e do Benefício da Prestação Continuada (BPC), que recebem rendimentos cuja variação é baseada nos reajustes do mínimo. A PNAD de 2021 mostra que o impacto era ainda maior, atingindo 56,7 milhões de pessoas.
Ricardo Stuckert
Trecho do livro ‘Quatro décadas com Lula’, de Clara Ant, traz relação do governo Lula com a valorização do salário mínimo
A nova legislação garantiu uma das maiores conquistas dos trabalhadores no que diz respeito à redução da desigualdade de renda. Além dos ganhos reais para assalariados, idosos e pessoas com deficiência, o aumento do salário mínimo incide também na elevação da remuneração de outras categorias profissionais de trabalhadores, já que por lei não pode haver piso salarial abaixo do mínimo.
Assim, municípios pequenos, que dependem do Fundo de Participação (FPM), viram a renda de suas cidadãs e cidadãos aumentar como resultado direto do aumento do salário mínimo, o que, por sua vez, aqueceu o comércio e o mercado de prestação de serviços.
Há outros ganhos menos visíveis que ocorreram no processo de luta pela valorização de longo prazo do salário mínimo. Ganhos políticos e organizativos. Afinal, foi uma construção elaborada a muitas mãos. No início, coube à CUT dar forma à proposta. Em seguida, todas as centrais sindicais participaram, num esforço inédito de aparar arestas entre organizações que, até então, tinham muita dificuldade para dialogar. Mesmo no interior da CUT, nem todas as decisões foram unânimes. Arthur Henrique, que participou de todas as negociações em nome da CUT, conta que houve certa resistência dos setores operários mais bem organizados, com remuneração acima do mínimo. No fim, acordaram uma espécie de operação casada: a luta pela valorização do salário mínimo foi acompanhada pela reivindicação de reajustes na tabela do imposto de renda de pessoas físicas, favorecendo trabalhadores mais bem remunerados e parte da classe média.
A campanha foi intensa e durou nada menos que três anos. Inspirados na forma de organização praticada pela Contag para construir a Marcha das Margaridas, os sindicalistas realizaram marchas nacionais em 2004, 2005 e 2006. Os eventos contaram com participação expressiva de trabalhadores de todo o país, que visitaram gabinetes de deputados e senadores num árduo trabalho de esclarecimento e convencimento. Contaram, também, com a preciosa colaboração do DIEESE³, fonte inquestionável de informações para aferir o poder aquisitivo do salário mínimo e sua capacidade de arcar com as despesas mínimas de uma família. Mesmo assim, a lei só foi aprovada em 2012, e nos últimos anos deixou de ser praticada, interrompendo os avanços rumo à redução da desigualdade de renda.
Guardo comigo a imagem que via pela janela da sala da minha equipe, quando a Esplanada dos Ministérios foi ocupada por trabalhadores de todo o país. Dessa lembrança, escuto um alerta: nada é irreversível.
[1] Participaram do acordo a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Força Sindical, a União Geral dos Trabalhadores (UGT), a Nova Central Sindical de Trabalhadores (NCST), a Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB) e a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).
[2] De acordo com o Artigo 7º da Constituição Federal, o salário mínimo é um direito dos trabalhadores urbanos e rurais e deve ser “fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhes preservem o poder aquisitivo”.
[3] Para saber mais sobre a política de valorização do salário mínimo, ver: https://bit.ly/3zr9j4m. Acesso em: 20 jun. 2022.