Atualização em 21/03 às 10h30
O Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (IEL) promoveu na quinta-feira (14/03) uma mesa de discussão sobre o acervo de Monteiro Lobato, intitulado “O IEL deve cancelar Lobato?”.
O debate teve um motivo: em 2023, o Centro Cultural Alexandre Eulalio (Cedae) da Universidade Estadual de Campinas realizou pela primeira vez a exposição “Retratos Literários”, que apresentava imagens e informações de escritores que fazem parte do acervo da faculdade, como Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Monteiro Lobato.
Essa não foi a primeira vez que os quadros foram expostos ao público. Em 2016 e, depois, de 2022 – no centenário da Semana de Arte Moderna – até setembro de 2023, o centro cultural já havia exibido as obras. Mas, dessa última vez, o cartaz de Monteiro Lobato sofreu uma intervenção com a inscrição “racista” e foi retirado do pavilhão de docentes, onde estava exposto.
No primeiro momento, a diretoria do IEL chamou o ato de “pichação”, reconhecendo depois que a manifestação foi uma “intervenção simbólica que não representa apenas a visão do responsável, mas também a de muitas pessoas sobre Lobato”.
Para o diretor do IEL, Petrilson Alan Pinheiro da Silva, o título da conversa foi “provocativo”, fazendo relação com com a etimologia da palavra provocare, do Latim, que significa “chamar para fora, mandar sair, mandar vir,
estimular, exortar” a visão latente de muitas pessoas a respeito de Monteiro Lobato e sua obra. Além disso, ressaltou que o debate envolveu questões mais amplas, como a própria atual cultura do cancelamento.
Opera Mundi esteve no debate, e Silva iniciou a conversa ressaltando que as imagens da exposição ‘Retratos Literários’ não têm como “objetivo fazer apologia a quaisquer dos escritores, mas apenas divulgar o acervo do Cedae”, e que a discussão sobre o tema “deve ter como alicerce algo imprescindível, que é a memória histórica”.
A mesa do evento contou com as participações: os professores Alfredo Melo e Marcos Lopes, de Teoria Literária, e Roberta Botelho, coordenadora técnica do Cedae.
Defesa do acervo de Lobato
A primeira integrante da mesa de conversa do IEL foi Roberta Botelho, coordenadora do Cedae, responsável não apenas pela exposição ‘Retratos Literários’, mas também pela manutenção dos 70 acervos que estão sob tutela do centro.
Botelho explicou como o centro cultural trabalha, com métodos de arquivação de documentos históricos para garantir “um acervo completo para quem pesquisa literatura e linguística”.
Segundo a coordenadora, o acervo de Lobato está no Cedae desde 1999, com a chegada da Biblioteca Lobatiana (que tem mais de 500 livros, folhetos e periódicos do autor) e, posteriormente, o Fundo Charley Frankie (que soma correspondências entre Frankie e Lobato sobre a indústria petrolífera brasileira).
Por fim, completando o acervo do autor do século XX, o Fundo Monteiro Lobato contém livros, correspondências entre familiares, amigos, intelectuais e escritores, desenhos e ilustrações, fotografias e um daguerreótipo.
Botelho ainda argumentou que defende o acervo “como qualquer outro que está no Cedae”, afirmando que “até esperava que isso [a inscrição “racista”] acontecesse” com o quadro exposto do escritor.
Foco no contexto histórico e social de Lobato
Já o professor Marcos Lopes admitiu ter uma “relação afetiva” com as obras de Lobato por conta de leituras na infância. Para ele, a manifestação contra a obra do escritor se classifica como uma “intervenção urbana como forma de protesto”, sendo uma “prática social compreensiva apenas a um grupo”, comparando esse episódio com outros atos espalhados na instituição.
“Jovens desafiam os poderes públicos e escancaram a degradação do espaço público ao desfrutarem a adrenalina proporcionada pela infração”, disse.
Apesar da definição, o professor argumentou que condenar ou absolver o ato ao quadro de Lobato “pouco ajuda a entender o que está na base do fenômeno”, mencionando a tese de doutorado de José Wellington de Souza, intitulada “Raça e eugenia na obra de Monteiro Lobato”:
“Não se trata de demonstrar que Monteiro Lobato era racista, ou que existam elementos racistas em suas obras, tampouco de argumentar sobre a existência de um racismo na obra ou de minimizar a presença de comentários preconceituosos ou de teorias biologicamente deterministas. Trata-se somente de tentar definir as condições sociais responsáveis por constituir de Monteiro Lobato enquanto escritor, da mesma forma que foram responsáveis pelo conteúdo e estilo das obras do autor. Neste trabalho, nego-me a responder se Monteiro Lobato era racista ou se sua obra é racista pois essas perguntas não se fundamentam sociologicamente. Raça e racismo não são questões que devam ser apresentadas como ponto de partida para uma pesquisa, mas construtos que devem ser entendidos em suas condições de produção”, cita Lopes sobre a tese de doutorado de Souza.
O docente resumiu a questão provocada pelo Instituto de Estudos da Linguagem afirmando que, hoje, já se sabe qual o sentido da obra de Lobato: “ela espelha o que se convencionou chamar de racismo estrutural. Podemos analisá-la desde que ela seja um instrumento de exemplificação desse racismo”.
“Devemos cancelar Lobato? Se por cancelar entendemos desistir de um compromisso, a pergunta é inócua, pois Lobato já foi cancelado. Não pelo IEL, mas por uma parte da comunidade da universidade. Nosso compromisso em ler Lobato e literatura com o espírito de um pluralismo crítico deixou de existir faz algum tempo”, concluiu o docente.
Na avaliação de Lopes, o Instituto não deve cancelar Lobato.
Um progressista não pode ser racista?
Também de Teoria Literária, o professor Alfredo Melo afirmou que a existência da mesa de debate após a polêmica do quadro “foi um dos fenômenos mais interessantes que pôde testemunhar” pelo desagrado que gerou no público do IEL.
“Os mais jovens achavam que era uma armadilha, e que o IEL queria passar pano para Lobato. Os mais antigos tomaram ao pé da letra e começaram a projetar a queima de Lobato, cada um com a sua mais perversa fantasia sobre o cancelamento do escritor”, analisou.
Melo, que dá disciplinas relacionadas à obra de Lobato todos os semestres na Unicamp, afirmou que possivelmente todos os alunos da graduação de Letras vão estudar o escritor e observar a “zona de ambiguidade que atravessa qualquer grande autor”, porque a “ideia não é museificar Lobato”.
“Para entender Lobato dos anos 1920 e 1930, é preciso dizer que ele era um autor progressista. Foi convidado por Luís Carlos Prestes para ingressar no Partido Comunista, tinha relações profundas com Caio Prado Júnior, da Editora Brasiliense, e os companheiros do Partidão levaram seu caixão quando morreu em 1948. Então ele era um escritor com profundas relações com a esquerda”, declarou Melo.
Para o professor, essas relações evidenciam o “grande desafio ideológico” do que é analisar obras quando as pessoas estereotipam que “um progressista não pode ser racista”. Melo recordou no debate que, no século XIX, era possível defender a abolição da escravidão e ter uma visão supremacista e de branqueamento gradual da população: “às vezes, as ideias mais estapafúrdias andam de mãos dadas”.
Melo baseou sua exposição na ambiguidade de analisar as obras de Lobato, exemplificada pelos livro Histórias de Tia Anastácia (1937), Jeca Tatuzinho (1924), e Negrinha (1920). Por conta disso, considerou que o estudo da obra de Lobato é “imprescindível na formação de qualquer estudante de Letras”.
Por fim, foi contrário ao cancelamento instigado pelo debate.
Lobato deve ser utilizado como “exemplo do que não fazer”
Com um anfiteatro parcialmente cheio, a organização abriu o debate aos que ali estavam: estudantes da graduação, pós-graduação, antigos docentes, funcionários do Cedae e visitantes.
Para a estudante de graduação em Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp Maria Gabriele, que realiza iniciação científica sobre Lobato, a forma que as obras do escritor são apresentadas e estudadas “deve ser repensada” por terem sido realizadas em um “contexto preocupante”.
Isso por que, segundo ela, autores negros na literatura infantil devem ser valorizados no lugar das obras de Lobato, que deve ser utilizado em “letramento social como exemplo do que não fazer”.
Já discente de Ciências Sociais, que faz parte do Núcleo de Consciência Negra da Unicamp, Inácio da Silva exaltou o evento ter sido realizado no dia 14 de março, data na qual a escritora Carolina Maria de Jesus e o ex-senador brasileiro Abdias do Nascimento completariam 110 anos. Além de marcar seis anos da morte de Marielle Franco.
“Não se trata de cancelar Lobato, de falar que suas obras não prestam. Fazemos críticas a Gilberto Freyre e o utilizamos. Mas a questão é quem tem o direito da memória do sucesso e da não-crítica. Lobato deve ser conservado como uma memória, mas deve ter todos os adjetivos que a memória que se diz a ele”, destacou Silva.
Por sua vez, a professora Laís Medeiros, integrante da rede de linguistas negros, rebateu a escolha do Cedae em colocar a exposição “Retratos Literários” no Pavilhão de Docentes do IEL como decoração temporária da instalação de forma a divulgar os acervos do Centro. “A intenção pouco importa, mas sim o efeito de sentido”, afirmou ao analisar que os quadros foram colocados “porque as paredes estavam muito brancas, e tornou as paredes mais brancas ainda”.
A educadora questionou ainda a exposição ao se colocar no lugar de um jovem negro que alcançou a graduação nos “primeiros passos de paridade social da Universidade” e se depara com o quadro de Monteiro Lobato, tão acusado de racismo. Na sua opinião, a diretoria não deveria ter retirado a obra com a inscrição “racista”, mas mantido o quadro desta maneira para que o “recado dos alunos” fosse conservado
Na contramão da maioria, Vanete Santana-Dezmann, que é pós-doutora em tradução pela Universidade de São Paulo e responsável pela tradução de obras de Lobato para o alemão, defendeu que o escritor não era racista, trazendo diversos trechos de suas obras para defender a argumentação.
Dezmann comentou a carta em que Lobato menciona a Ku Klux Klan, movimento de supremacismo branco dos Estados Unidos, afirmando que “não se pode ler apenas um parágrafo do texto”, evidenciando conteúdo antes e depois do comentário de Lobato.
A pós-doutora também sustentou sua afirmação ao informar que Lobato “alfabetizou diversos homens pobres e negros” enquanto estava preso em 1940, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, complementando que, inclusive, um deles o procurou após a detenção e foi contratado como jardineiro pelo escritor.