Não é novidade que o processo de precarização do trabalho avança no mundo em diferentes frentes. Também não é nova a compreensão de que a luta política e econômica é central para o enfrentamento desses retrocessos. Afinal, é sempre bom lembrar que na luta de classes não há empate.
Sentimos isso na pele em nosso dia-a-dia. Qualquer trabalhador e trabalhadora, de alguma forma, vivencia a precarização cotidiana em suas vidas. Terceirizações, aumento da informalidade, flexibilização da legislação trabalhista, insegurança, aumento de horas extras e precárias condições de saúde e segurança em ambientes de trabalho fazem parte da “fábrica de moer gente” que é o mundo do trabalho contemporâneo.
O golpista Michel Temer e o fascista Jair Bolsonaro cumpriram à risca seus papéis na destruição de políticas públicas e ataques diretos aos interesses da classe trabalhadora. A terceirização irrestrita e as contrarreformas Trabalhista e da Previdência esfacelaram os direitos dos trabalhadores, e obviamente, sua saúde. Os dados do mercado de trabalho pós-contrarreformas são inquestionáveis: as medidas não apresentaram os resultados prometidos, mas ampliaram a exploração dos trabalhadores e atacaram suas condições de vida, saúde e trabalho.
O tempo passou e Bolsonaro foi eleitoralmente derrotado na campanha presidencial de 2022 pelo então candidato Lula. É inegável que a derrota eleitoral de Bolsonaro abriu campo para “um suspiro” da classe trabalhadora. No entanto, o mesmo movimento possibilita um retorno à panaceia criada em torno da figura Lula, como um “fetiche”. Dito de outra forma, seria a farsa tratar o atual presidente como ferrenho defensor da classe trabalhadora, combatendo retrocessos e ataques a esta, o que a história nos mostra como um engano desde 2002 e foi explicitado antes mesmo de sua posse, na publicação da “Carta aos Brasileiros”. Vejam, aqui não estamos realizando uma comparação ou juízo dos governos Temer e Bolsonaro com os governos petistas, apenas demonstrando que ambos atendem aos interesses do capital, e como não há empate possível nessa luta, atacam nossos (trabalhadores) interesses, de diferentes formas e em diferentes intensidades.
O exemplo mais recente disso veio por meio de cerimônia realizada no dia 4 de março, na qual o sorridente presidente apresentou o Projeto de Lei (PL) que regula atividade de motorista por aplicativos. Nas palavras do presidente:
“Vocês acabaram de criar uma nova modalidade no mundo de trabalho. Foi parida uma criança no mundo do trabalho. As pessoas querem autonomia, vão ter autonomia, mas precisam de um mínimo de garantia”.
A “criança parida” é batizada como “trabalhador autônomo por plataforma com direitos”. De cara, apenas pela nomenclatura utilizada, é descaracterizado o vínculo de emprego entre trabalhador e empresa, uma vez que esses são “autônomos”. O PL é elogiado pela representação da UBER como um marco importante, pois “visa à regulamentação do trabalho intermediado por plataformas”. Interessante destacar, como discutem Severo e Souto Maior (2024), que essa intermediação é falsa, pois as empresas admitem, assalariam e dirigem a atividade desses trabalhadores.
Também está disposto na proposta do PL que o período máximo de conexão do trabalhador a uma mesma plataforma não pode ultrapassar 12 horas. Isso mesmo, 12 horas de trabalho! Para além da vasta legislação de proteção ao trabalho (ferindo preceitos constitucionais), inclusive internacional, há um elemento ético-político na absurda proposta, que desvaloriza a luta e, sobretudo, a vida dos trabalhadores. Também estão previstas punições aos trabalhadores, como suspensões e bloqueios; um “chicote” mais sofisticado que os utilizados em tempos de escravidão. Que avanço!
A “criança parida” nasceu com alguns séculos de idade, combina jornadas de trabalho do século XIX e mecanismos de punição, além de criar um “trabalho autônomo” que é totalmente subordinado e controlado pelas empresas. Tudo isso parido por um presidente que foi líder sindical e operário mutilado pelo trabalho. Seria uma aberração ou uma comprovação do compromisso de classes desse governo?
A coisa fica mais grave se repararmos em alguns “detalhes” políticos. Qual é a grande demanda das empresas? O não reconhecimento de vínculo formal de trabalho. Nos tribunais brasileiros, temos mais de 10 mil processos de trabalhadores cobrando o reconhecimento de vínculo trabalhistas. O governo Lula entrega o grande desejo das empresas. Por outro lado, qual é a grande demanda, no atual estágio de consciência, dos trabalhadores de aplicativo? Taxas maiores de retorno por corrida, repartição de custos (como combustível) e redução do poder discricionário das plataformas na regulação do trabalho.
Nenhuma das demandas dos trabalhadores foram atendidas. Ao contrário, o PL do governo Lula tem repúdio quase universal, pois estabelece um piso salarial de 32 reais por hora efetivamente trabalhada e não por quilômetro rodado. Para piorar o cenário, o governo Lula repete uma prática utilizada desde 2023, mas que boa parte das lideranças, intelectuais e comunicadores do campo progressista ignoram: impor regime de urgência na tramitação de projetos de lei.
Nos tempos da presidência de FHC ou em períodos mais recentes, com Michel Temer e Jair Bolsonaro, toda a esquerda criticava a prática de impor aprovação de projetos de lei em regime de urgência – sem uma real justificativa para tal. A crítica apontava algo básico: o regime de urgência impede debates em comissões, dificulta audiências públicas, debates na sociedade e pressão organizada sobre os parlamentares. O regime de urgência, em suma, ajuda a manter o tema como assunto dos corredores de Brasília, onde reina o lobby, o poder do dinheiro, a corrupção, o suborno e as emendas parlamentares.
Todos os projetos do governo Lula, como o Novo Teto de Gastos e a “reforma” tributária, foram empurrados goela abaixo em regime de urgência, operados por Arthur Lira. Contudo, dessa vez, temos uma categoria que está mobilizada, com capacidade de pressão e que sabe que estamos em ano eleitoral, disposta a derrubar esse regime de urgência e criar as condições políticas para um debate realmente democrático e que não beneficie apenas as empresas.
A pergunta que fica é: o governo Lula manterá o regime de urgência, aprovando o PL em menos de 30 dias, antagonizando-se com mais de 1 milhão de trabalhadores para agradar as empresas e criar uma estrutura sindical que pode ter arrecadação de 100 milhões por ano? Caso esse seja o caminho, basta depois xingar os trabalhadores que estiverem contra o governo Lula, chamá-los de alienados e burros e culpar as “fakes news” do WhatsApp – e claro, em 2026, bradar de novo a velha canção da “democracia contra o fascismo”.
Por último, é necessário destacar que uma vez que o PL seja aprovado pelo Congresso, abre-se a prerrogativa para “o nascimento de novas crianças”, para todas as ocupações e modalidades de trabalho, decretando um dos maiores retrocessos aos direitos dos trabalhadores e à sua saúde na história do Brasil.
(*) Jones Manoel é historiador, professor, mestre e doutorando em Serviço Social, escritor, educador, comunicador popular e militante comunista.
(*) Paulo Lira é médico veterinário e sanitarista