A última quarta-feira (27/05) foi um dia histórico, não somente para o futebol, mas especialmente para o mundo do esporte. Sete “cartolas”, apelido histórico dado aos dirigentes de futebol, foram presos em Zurique, incluindo José Maria Marin, ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol e ex-governador biônico do estado de São Paulo durante a ditadura militar. Mais quatro dirigentes estão atualmente investigados e os onze foram “suspensos” da Federação Internacional de Futebol. Marin estava na Suíça para a eleição da Fifa, onde foi preso pela polícia do país, mas atendendo pedido do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, em uma demonstração não apenas de investigação, mas também de interesse político.
Fotos: Agência Efe
Blatter (esq.) e Ali bin Al-Hussein, príncipe da Jordânia: os dois disputam eleição para presidência da Fifa
Além de Marin, outros nomes conhecidos também estão sendo investigados, como Jack Warner, ex-vice-presidente da Fifa, e Nicolás Leoz, ex-presidente da Conmebol, a entidade sul-americana do esporte. O inquérito promete continuar, com grandes desdobramentos no Brasil. O país sediou a última Copa do Mundo e, tanto o antecessor de Marin, Ricardo Teixeira, quando seu sucessor, Marco Polo Del Nero, fizeram parte da Copa do Mundo em algum momento, além de serem todos associados. Outros atores importantes dos eventuais esquemas investigados, como propinas na Copa do Mundo e em contratos de publicidade, também são brasileiros, como o empresário J. Hawilla, da Traffic, que já assumiu responsabilidade.
Certamente veremos mais algumas notícias sobre o assunto aqui no Brasil, como a recém visita da Polícia Federal até a sede de uma empresa associada da CBF. O Brasil, entretanto, não é o ator principal das investigações, esse papel cabe aos EUA e a sua justiça federal. Em longa coletiva de imprensa em Nova York, representantes do Departamento de Justiça dos EUA e do FBI deram diversas declarações em tom forte. Na perspectiva legal, as autoridades do país justificam as ações pois as transações ilícitas utilizaram bancos dos Estados Unidos; também afirmam ter jurisdição pois envolve a Copa do Mundo, cujos maiores valores de direitos de transmissão são pagos por empresas do país. Assim, a Justiça dos EUA age também em defesa dos interesses de sua economia, mas a explicação não para aí.
Aqui deve-se deixar uma coisa clara: analisar as razões para os EUA deflagrarem uma operação desse vulto na véspera da eleição da Fifa não implicam condenar essa mesma operação. Não implicam a negação das acusações ou a afirmação cega de inocência dos investigados. O objetivo do texto, como visto em seu título, é mostrar que uma ação ética pode ser também uma ação de interesse, sem que uma anule a outra. O primeiro interesse é o que já foi exposto, de proteger a economia e o capital dos EUA contra fraudes e crimes fiscais, como propinas e lavagem de dinheiro. Outro pode ser visto nos antecedentes da operação.
Loretta Lynch, do Departamento de Justiça norte-americano, comandou as investigações
O ex-procurador de Justiça dos EUA Michael Garcia foi contratado pela Fifa em 2014 para examinar as escolhas da Rússia e do Qatar para sediarem as Copas de 2018 e 2022, respectivamente. O relatório final de Garcia apontou uma série de irregularidades, mas foi convenientemente ignorado pela Fifa. Garcia teria, então, fornecido os mesmos dados para seus ex-colegas dentro dos EUA. Um detalhe importante: o país norte-americano foi candidato à sede da Copa do Mundo de 2018; após um acordo que estabeleceu que seria uma Copa sediada dentro da UEFA, a entidade europeia de futebol, a candidatura dos EUA foi transferida para a Copa de 2022. Na quarta rodada de votações, perdeu para o Qatar por catorze votos contra oito.
NULL
NULL
Temos um cidadão dos EUA, ex-funcionário do governo de seu país, que coleta indícios de irregularidades no processo de escolha de sede que culminou na derrota da candidatura do país americano. Novamente, a ética e o interesse caminham juntos, já que temos sete anos até a Copa do Mundo de 2022, a candidatura do Qatar poderia ainda ser revertida. Talvez em prol dos EUA. Continuemos, sobre o timing da operação. Incomodar o andamento da Fifa nesse momento também colabora para enfraquecer os últimos preparativos da próxima Copa do Mundo. Na Rússia, país atualmente sob sanções dos EUA; uma dessas sanções afeta de forma incisiva a operadora de cartões de crédito que patrocina a Copa do Mundo.
Pouco tempo após as prisões, o Ministério de Relações Exteriores da Rússia divulgou uma nota, afirmando que a operação se tratava de “outro caso ilegal e extraterritorial da lei norte-americana”. Também pedia para que os EUA “parem de tentar fazer justiça além de suas fronteiras”. Se a política dos EUA é impor sanções econômicas contra a Rússia, é coerente com essa política eventualmente prejudicar o andamento dos preparativos para um evento que fornece capital internacional, integração econômica, turismo e espaço midiático e publicitário, tanto para o país quanto para empresas. Além de todos esses fatores, deve-se considerar também o crescente mercado do futebol dentro das fronteiras dos EUA.
Tomaz Silva/Agência Brasil
Marin, ex-presidente da CBF, foi um dos presos na operação da Suíça
A Major League Soccer, o campeonato profissional do país, está em expansão desde 2012, quando celebrou duas décadas de existência. Novos times, um mercado que atrai jogadores internacionais de renome e uma média de público superior à média de público do Campeonato Brasileiro e comparável com alguns campeonatos europeus. O esporte deixou de ser apenas para os imigrantes latinos e começou a cativar o público em geral, especialmente com a seleção nacional. E tanto o governo quanto o empresariado dos EUA sabem que o esporte é um grande filão que pode ser explorado, a tentativa de trazer mais uma Copa do Mundo, a segunda em menos de trinta anos, para o país não era despropositada.
Ao contrário das ligas bilionárias do basquete e do futebol americano, entretanto, os EUA não detém o monopólio no futebol. O futebol americano é um esporte praticado no país, pouco praticado internacionalmente. O basquete é um esporte tradicional no mundo todo, mas o sonho de qualquer atleta da modalidade é jogar na NBA, o nível mais alto de basquete, assim como de espetáculo e de dinheiro. Se pegarmos o exemplo do hóquei no gelo, entretanto, veremos que a estrutura profissional do esporte nos EUA tem problemas quando enfrenta concorrência; muitos jogadores do esporte são europeus, onde estão ligas profissionais reconhecidas. Greves nesse esporte costumam afetar muito mais os negócios do que seus equivalentes no basquete.
Sendo assim, para penetrar ainda mais nesse enorme mercado, com uma crescente demanda interna, é interessante para a economia do país que o alcance político do governo colabore. Fazer frente aos investidores, muitas vezes suspeitos, do futebol europeu não se trata apenas de assinar um cheque. Trazer uma Copa do Mundo para aquecer o mercado do futebol nos EUA não é meramente questão de quem tem o melhor estádio. O momento dessa exposição e dessa operação por parte da Justiça dos EUA dificilmente é uma coincidência. Quando o promotor federal Kelly Currie afirma que “é o começo do nosso trabalho e não vamos parar por aqui” e que vão “limpar o futebol mundial”, certamente essas palavras são um alento para muitos brasileiros que gostam do esporte e lamentavam a falta de ética em sua gestão, mas também carregam um grande interesse.
(*) Filipe Figueiredo é redator do Xadrez Verbal