A capital da Nicarágua, Manágua, não anda com muita sorte. Dois de seus três últimos prefeitos morreram no cargo. Herty Lewites, com bons índices de aprovação, era o candidato à presidência do Movimento Renovador Sandinista, uma dissidência da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). Depois de uma bem-sucedida operação cirúrgica, entrou otimista na campanha eleitoral de 2006, mas teve um ataque cardíaco e morreu. Três anos depois, a causa de seu falecimento ainda gera especulações acaloradas. O irmão acusa: político carismático, de longa trajetória revolucionária e futuro brilhante pela frente, Lewites foi envenenado. Quem teria feito isso? A suspeita do irmão recai sobre a Frente Sandinista, seu ninho de origem.
Recentemente, o ex-campeão mundial de boxe Alexis Argüello, o grande ídolo esportivo de toda a história do país, eleito pela FSLN na polêmica eleição de 2008, deu um tiro no peito durante a madrugada. Pessoas próximas dão versões diferentes para o suicídio, embora todos concordem que se tratava de uma personalidade psicologicamente instável e que tentava se livrar das drogas. Uns dizem que ele nunca mais foi o mesmo depois que abandonou o boxe, que o alimentava de uma vaidade excessiva. A política foi uma válvula de escape para ser querido pelo povo novamente. Outros dizem que a tragédia foi consequência de seu inconformismo diante das frequentes imposições dos sandinistas sobre o seu governo. Novamente, o dedo acusador aponta na direção da Frente Sandinista.
Hipóteses à parte, o fato é que esses dois episódios ilustram bem o nível de polarização entre a FSLN e as demais forças políticas, principalmente liberais e conservadores, organizações que historicamente se amam e se odeiam, mas que têm em comum o apetite pelo poder. Ao derrubar Anastácio Somoza, em 19 de julho de 1979, os sandinistas desmontaram não só a máquina de guerra antipovo do ditador como também colocaram os políticos tradicionais na defensiva.
Ascensão e revés sandinista
Nos primeiros anos da revolução, no auge do apoio popular e da solidariedade internacional, a FSLN liderou um processo de radicalização política que levou à uma série de medidas de transformação social: reforma agrária, erradicação do analfabetismo, ampliação do sistema de saúde pública e nacionalização do sistema financeiro. A ascensão sandinista coincidiu com a retomada do governo pelos republicanos nos Estados Unidos. Na figura hollywoodiana de Ronald Reagan, que decidiu impedir qualquer efeito dominó na área de influência de Washington, teve início um bloqueio econômico contra o país e uma guerra sem precedentes, com cenas típicas dos filmes de James Bond como foi o caso da explosão do estratégico porto de Corinto, em outubro de 1983. Nessa situação, o luto das famílias nicaraguenses se tornou permanente, colocando em dúvida se a defesa nacional valia o sacrifício de seus filhos.
A guerra desatada a partir de Honduras, onde as bases contrarrevolucionárias estavam localizadas, produziu um custo altíssimo em vidas, principalmente de jovens alistados compulsoriamente pelo Exército. Por outro lado, a crise econômica provocada pela dívida externa nos países dependentes, o desmantelamento em série do bloco socialista e as terríveis restrições de consumo geradas pelo bloqueio norte-americano criaram as condições para que a oposição sandinista recuperasse o governo em 1990, com a eleição de Violeta Chamorro, viúva do jornalista Pedro Joaquín Chamorro, um histórico opositor da ditadura somozista, assassinado em 1978.
Naquele momento, a Frente Sandinista sofreu dois revéses: um eleitoral e outro interno, com o aprofundamento das divergências não superadas desde os tempos da luta armada. A concentração de poder em torno da figura de Daniel Ortega levou ao acirramento das disputas e à formação, anos depois, do Movimento de Renovação Sandinista, o mesmo do prefeito Herty Lewites, e, a partir deste, o Movimento pelo Resgate do Sandinismo, da comandante Monica Baltodano.
No campo da oposição tradicional, a eleição de Violeta Chamorro pacificou liberais e conservadores, que se revezaram no poder nas duas eleições presidenciais seguintes, sempre derrotando Ortega. A unidade antissandinista se mostrou vulnerável às ambições pessoais quando o ex-presidente Arnoldo Alemán sofreu uma série de acusações de corrupção que o levariam, mais tarde, à prisão.
O segundo mandato
Foi nesse momento de divisão das forças conservadoras que a FSLN decidiu colocar na mesa sua mais ousada cartada eleitoral: insistiu com Daniel Ortega e indicou como candidato a vice-presidente ninguém menos que o antigo líder da contrarrevolução. Na mesma direção de reconciliação acenou para um adversário histórico: o poderoso cardeal de Manágua, Miguel Obando y Bravo. Com a morte de Lewites e a fragilização das forças tradicionais, Ortega conseguiu o apoio tácito de um expressivo grupo de liberais sob a batuta de, ninguém menos, do que Arnoldo Alemán, o ex-presidente condenado por corrupção.
Feitas as contas, era preciso alterar a Constituição e fazer com que a barreira histórica de votação da FSLN (sempre na casa dos 35%) não impedisse a vitória de Ortega. O jeito foi arrumar um mecanismo curioso: para vencer no primeiro turno, o candidato deveria ter 40% ou mais dos votos, ou então uma margem superior a 8% sobre o segundo colocado. Em novembro de 2006, com 37,5% dos votos, Daniel Ortega assumiu a presidência pela segunda vez.
Mas, 16 anos depois de sua derrota para Violeta Chamorro, o que significava exatamente a volta à presidência nestas circunstâncias? Quando perdeu a eleição, Ortega entregou um país depauperado pela guerra, porém com forte simbolismo nacional e revolucionário. Todos os governos pós-1990 assumiram a bandeira neoliberal, modelo hegemônico na quase totalidade dos países latino-americanos.
O “consenso de Washington” deixou duas heranças. A primeira, a modernização da infraestrutura do país, fruto da suspensão do bloqueio dos Estados Unidos e do fim da elevada participação do governo na economia. Terras confiscadas pela reforma agrária foram devolvidas aos seus proprietários; educação e saúde se transformaram em áreas não prioritárias; as relações comerciais com os vizinhos centro-americanos se normalizaram com os acordos de paz; e os investimentos estrangeiros receberam generosas isenções. A segunda herança foi reconduzir a Nicarágua para a triste condição de vice-campeã da pobreza no continente, atrás apenas do Haiti. Além do desemprego e da fome, especialmente na área rural, o desabastecimento de energia alcançava a impressionante média de 11 horas diárias. Esta contradição entre a aparência de um país moderno e a agudização da crise social manteve a popularidade dos ideais sandinistas e garantiu a vitória.
Imediatamente, Ortega tratou de mostrar que a revolução sandinista estava de volta. Criou o programa “Hambre Cero” (Fome Zero), espelhado na experiência brasileira; colocou a luta contra o analfabetismo e a recuperação da saúde pública como prioridades; e foi atrás de novos investimentos estrangeiros. A parceria com a Venezuela de Hugo Chávez veio naturalmente em duas frentes: pelo discurso político, afinado na história de luta pela soberania de Bolívar e Sandino, e pela economia, com a necessidade de comprar petróleo em condições mais favoráveis para recuperar a capacidade energética e evitar os “apagões”.
Com as instituições do Estado dirigidas por gente simpática ao sandinismo, Ortega bancou o ingresso da Nicarágua na Aliança Bolivariana das Américas (ALBA) e acirrou as divergências com as forças de oposição. As eleições municipais de 2008, quando a FSLN conquistou mais de uma centena de prefeituras, foram marcadas por denúncias de fraude que levaram o governo norte-americano e a União Europeia a congelar a cooperação econômica causando um impacto significativo na receita nacional. A crise financeira mundial e o declínio da principal fonte de divisas do país, que é o dinheiro enviado por cerca de um milhão de nicaraguenses que vivem nos Estados Unidos, agravaram a situação econômica interna e têm obrigado o governo a fazer sucessivos cortes no orçamento.
E foi neste cenário de forte restrição orçamentária e de tensa polarização política que Daniel Ortega comemorou os 30 anos da Revolução Popular Sandinista. Para apimentar o ambiente, colocou na mesa a proposta de um referendo que abre as portas para mudanças na Constituição e, de quebra, nas regras eleitorais, o que permitiria, em tese, a possibilidade de reeleição, hoje proibida. As dezenas de milhares de pessoas que estavam reunidas na Praça da Fé, em Manágua, aplaudiram com entusiasmo. A oposição torceu o nariz. Pela história da Nicarágua, isto nunca foi diferente. Resta saber agora em quais condições os dois lados chegarão às eleições presidenciais de 2011 e, até lá, o que de fato terá mudado na estrutura social do país.
Ortega quer reeleição
Daniel Ortega aproveitou o ato público em comemoração aos 30 anos da Revolução Popular Sandinista para anunciar, diante de 50 mil pessoas, sua intenção de modificar a Constituição por meio de um plebiscito para permitir a reeleição de presidente, prefeitos e vereadores que, pela legislação atual, não podem concorrer a um segundo mandato (o país não tem governadores).
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Os deputados, que vão tomar a decisão de convocação ou não do referendo, não têm essa restrição. Para levar adiante seu projeto, Ortega necessita do apoio de 2/3 dos 90 votos do congresso unicameral nicaraguense. O partido do presidente, a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), mantém uma aliança de conveniência com o Partido Liberal Constitucionalista e agora resta conquistar apenas três deputados, segundo a imprensa local.
Pelo jeito como se faz política no país, a reeleição pode estar muito próxima. Os conflitos políticos, que desembocam não raramente em violência, acontecem na mesma proporção das reaproximações e conchavos entre inimigos históricos. No ato do dia 19, por exemplo, no mesmo palanque de Ortega estava ninguém menos do que Edén Pastora, que ficou conhecido mundialmente em 1978 ao liderar a ocupação do Palácio Nacional, sede do congresso nicaraguense na época do ditador Anastácio Somoza. O “comandante Zero”, seu nome de guerra, é uma personalidade típica das novelas do realismo fantástico latino-americano. Logo depois do triunfo revolucionário, assumiu um cargo de direção no Exército e, meses depois, desapareceu misteriosamente. Deixou no ar a ideia de que ia lutar em outros países, numa tentativa, quem sabe, de reeditar o místico guerrilheiro Che Guevara. Algum tempo depois, Pastora reapareceu à frente de um grupo armado na Costa Rica para lutar contra os próprios sandinistas. Não deu certo, e após duas fracassadas tentativas de chegar à presidência com um discurso agressivo contra Ortega e a FSLN, lá estava o “comandante Zero” no palanque.
O mesmo aconteceu com dom Miguel Obando y Bravo, ex-cardeal de Manágua. Duro crítico do sandinismo no primeiro período da revolução, ele foi responsável pela expulsão da Igreja de sacerdotes e religiosas progressistas. Em 2006, abençoou a candidatura de Ortega que, por sua vez, tem retribuído com um recorrente discurso no qual reivindica a inspiração de Deus para governar.
A impressão é que, diferentemente do que ocorreu em Honduras, o presidente sandinista não terá dificuldade para alterar a Constituição. O Exército da Nicarágua não será obstáculo porque nasceu da luta revolucionária e é comandado por ex-guerrilheiros. Resta saber o que dirá o povo. Em 1990, contra todas as pesquisas eleitorais, Daniel Ortega perdeu para a candidata da oposição, Violeta Chamorro. As urnas guardam muitos mistérios.
* Marco Piva é jornalista especializado em América Central e autor do livro Nicarágua: um povo e sua história (Edições Paulinas, 1986).
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