A iniciativa de um grupo de amigos, por meio das redes sociais, com a hastag #RenunciaYa (#RenunciaJa) surgiu naquele primeiro protesto cidadão pacífico, um movimento cujos adjetivos se manteriam ao longo de 19 semanas de manifestações: totalmente cívicas, livres de qualquer vínculo político-partidário e sempre em paz, sem nenhum tipo de desordem, que nem mesmo incomodou a livre locomoção dos que não participavam, já que a prancha de granito em frente ao palácio nacional se transformou em ponto de reunião.
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Molina renunciou na noite do dia 02/09 e no dia 03/09 foi preso no quartel de Matamoros
As cifras dos manifestantes variaram, os banners, o clima e até as demandas, ainda que desde o princípio, a exigência da saída da vice-presidente (cujo ex-secretário privado Jaun Carlos Monzón era considerado em princípio a cabeça da estrutura) foi acompanhada, como uma sombra, pela demanda de renúncia do (agora ex-presidente) Pérez Molina: uma sombra que cresceu até o ponto de eclipsar a campanha eleitoral [1]e de ofuscar a imagem do governo do Partido Patriota que teve início no dia 14 de janeiro de 2012.
[Roxana] Baldetti renunciou no dia 9 de maio, quando estava por ser discutida no Congresso a eliminação de sua imunidade como vice-presidente. No dia 19 de abril, deu uma coletiva de imprensa que deixou mais dúvidas que certezas. Depois de sua saída permaneceu várias semanas fora da esfera pública até ser capturada no dia 21 de agosto, em um hospital privado. O juiz ordenou que fosse para a prisão preventiva, não tanto pelo perigo de fugir, mas para evitar que interferisse na investigação. No entanto, sua saída, longe de baixar a pressão social, concentrou-a sobre seu companheiro de legenda.
Com a petição de renúncia de praticamente todos os setores sociais, que se acentuou nas últimas duas semanas e que alcançou um nível de clamor nacional no dia 27 de agosto, o ex-presidente Otto Pérez Molina ficou praticamente sozinho, unicamente com o apoio institucional do Exército, ainda que numerosos oficiais expressassem seu descontentamento com o desgaste que o general aposentado atraiu em quatro meses sobre a instituição, período no qual teve início a primeira manifestação contra a corrupção na Praça da Constituição, no dia 25 de abril, à qual compareceram mais de 30 mil pessoas.
Traição política
Entretanto, o golpe político final não foi dado pelos guatemaltecos indignados, nem pelo setor privado organizado, que tacitamente o apoiou em um primeiro momento, nem a batalha verbal construída através das redes sociais que diariamente faziam eco, piada e reiteravam os pedidos de depuração e de batalha contra a corrupção. Tampouco foi dado pela investigação do Ministério Público e da CICIG (Comissão Internacional contra a Impunidade) com suas escutas telefônicas, documentos e outras evidências. A punhalada final ao governo de Pérez Molina foi dada pela própria bancada governista, que no dia 1 de setembro votou a favor de que a imunidade fosse retirada. Talvez tentassem resgatar algo de força política frente eleições programadas para o iminente dia 6.
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Guatemaltecos protestam diante do consulado da Guatemala nos EUA e pedem destituição do cônsul por envolvimento no esquema
Verdade: esse não era o primeiro governo no qual se identificavam escândalos desse tipo: a administração de Alfonso Portillo (2000-2004) teve fraudes, a de Oscar Berger (2004-2008) deixou um rastro de dúvidas, Álvaro Colom (2008-2012) não se livrou de acusações, mas era a primeira vez que se tinham gravações telefônicas nas quais se punha em evidência a possível participação da dupla presidencial. E a Guatemala saiu às ruas. A saída de Baldetti foi motivo de festa. Fogos de artifício, gritos, clamor. Mas nas primeiras semanas não faltou quem dissesse que o protesto no sábado tinha sido bastante sem graça. Até o próprio Pérez Molina disse que se tratava de “um pequeno grupo”. Também não faltaram aqueles que quiseram tirar proveito político frente ao pequeno comparecimento na segunda, terceira e nas marchas subsequentes, os aproveitadores se afastaram.
Discurso que acenderam o fogo
No dia 28 de abril, 12 dias depois da revelação do caso da rede de fraude aduaneira A Linha e apenas três dias depois da primeira manifestação, Pérez falou em cadeia nacional. Disse ter escutado a mensagem da população “de forma clara e contundente “e disse estar indignado com o caso de fraude e anunciou uma reestruturação da SAT [Superintendência de Administração Tributária].
No dia 23 de agosto, depois da detenção de Baldetti, em uma mensagem gravada, o presidente declara que não pensa em renunciar, acusa o setor privado de ser cúmplice de outra “Linha” de fraude e invoca inclusive uma estratégia de intervenção estrangeira para minar a democracia, em alusão à Cicig. “Com o caráter que nego minha vinculação, não posso deixar de reconhecer que aconteceu no meu governo e com funcionários próximos, e me obrigo a pedir desculpas públicas e do fundo do meu coração pedir perdão aos guatemaltecos”.
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Mas os guatemaltecos não o perdoam e a exigência de renúncia aumentou. Convocou-se um protesto inédito na quinta-feira. No domingo, 23 de agosto, o líder camponês Daniel Pascual, representando 72 organizações agrupadas na Assembleia Social e Popular, convoca três dias de “mobilização pela dignidade nacional”, cujo objetivo principal é exigir a renúncia do presidente.
O chamado teve sucesso e desde a terça-feira (25/08), milhares de cidadãos começam a se manifestar nas principais cidades da província. A grande marcha convocada para a quinta-feira(27/08), se transforma em uma manifestação inédita, sem precedentes na história moderna, à qual se unem, em todo o país, colégios, universidades, empresários (mas não oficialmente o Cacif [Comitê Coordenador de Associações Agrícolas, Comerciais, Indústriais e Financeiras] que uniu-se no último momento) e coletivos sociais (exceto aqueles sindicalistas ligados aos dirigentes relacionados ao governo como Joviel Acevedo, de professores, ou Luis Lara, de saúde pública).
Agência Efe
Desde renúncia de Molina, guatemaltecos saem às ruas para comemorar
O grito foi trovejante. A Praça da Constituição rugiu como não acontecia em mais de 70 anos. E também as ruas e praças de várias capitais federais. O eco foi colossal. O movimento foi comparado à grande marcha unificadora de 1920, mas sobretudo à Revolução de 20 de outubro de 1944. A força dessa democracia obrigou os deputados (que com uma estratégia legislativa o salvaram de um julgamento prévio) a conquistar o quórum necessário para discutir o julgamento prévio, avaliado pela comissão promotoria e tramitado inicialmente pela Corte Suprema de Justiça a pedido do MP e da Cicig.
Pérez não compareceu à convocação judicial no dia 29 de agosto. Enviou um relatório escrito no qual negava as acusações contra ele. De fato, nunca foi como presidente ao Congresso da República, que apesar de tudo e de seus questionamentos, é legalmente a máxima representação do Povo.
Quase no fim do dia 2 de setembro, Pérez Molina novamente se escondeu atrás de uma carta que enviou ao Legislativo. O dia 3 de setembro amanheceu com uma notícia que correu como uma brisa: depois de 19 semanas de protesto, o presidente Otto Pérez Molina deixou o cargo. É impossível não pensar na queda do general Federico Ponce Vaides, no dia 20 de outubro de 1944, porque as pessoas celebram nas ruas, respiram novas esperanças e outro militar é expulso, depois de 131 dias de clamor popular, sem uma única gota de sangue, ainda que com muito suor.
*Texto publicado originalmente no site guatemalteco Prensa Libre
[1] O país celebrará eleições gerais para presidente, vice-presidente, deputados, vereadores e prefeitos neste domingo (06/09)