O prêmio Nobel de Literatura para Mario Vargas Llosa certamente provocará muita discussão, dado que, há algumas décadas, Vargas Llosa tornou-se um colunista conservador política e artisticamente, um crítico feroz da esquerda latino-americana, que não conseguiu congregar nem mesmo quando enfrentou no Peru, com um discurso liberal, a nascente ditadura de Alberto Fujimori (a quem a política externa brasileira de viés conservador ofereceu a mão).
Vargas Llosa, nascido em 1936, em Arequipa, no sul do Peru, como se sabe, é mais um representante da vaga literária latino-americana que conquistou a Europa nas décadas de 1960 e 1970 do século passado. Esta onda já rendeu o Nobel a Miguel Ángel Asturias (1967), Pablo Neruda (1971), García Márquez (1982) e Octávio Paz (1990). Outro nome que ganhou dimensão internacional devido a essa movimentação foi o do mexicano Carlos Fuentes, que vai provavelmente figurar por mais uns anos na lista de premiáveis.
Alguns dos livros de Vargas Llosa, como A cidade e os cachorros, que se passa num colégio militar em Lima, em que se expõe o autoritarismo através do rigor das normas de conduta em relação aos cadetes, e Pantaleão e as visitadoras, de tema mais irônico (o Exército organiza um serviço de prostituição para seus pelotões), tornaram-se referência para entender o fenômeno literário e político latino-americano. No Brasil, há um interesse adicional na sua obra, por conta de A guerra do fim do mundo, que dá forma ficcional ao conflito de Canudos.
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Sem entrar em uma discussão mais aprofundada das qualidades e os sentidos da obra de Vargas Llosa, sobra uma questão: é possível um escritor ou um artista conservador construir uma obra que se choca com essas posições?
O crítico brasileiro Alfredo Bosi, em Literatura e resistência, escreve que, “em princípio, a margem de escolha do artista é maior do que a do homem-em-situação, ser amarrado ao cotidiano”. Por isso, especialmente nos tempos em que o “élan revolucionário” não polariza e comove tanto os homens de ação como os criadores de ficção, “o artista da palavra pode desenvolver, solitária e independentemente, a sua resistência” ao que Bosi chama de “antivalores” do meio.
É uma questão que permeia a história literária. O exemplo clássico é a valoração positiva que o pensador marxista Georg Lukács (seguindo uma sugestão de Engels e do próprio Marx) aponta na obra de Balzac, conservador e politicamente defensor da aristocracia, mas, para Lukács, a melhor obra ficcional sobre o capitalismo do século XIX. Os casos, no entanto, são muitos – o namoro de Ezra Pound com o fascismo e a indulgência de Borges com Pinochet, para ficarmos em apenas dois nomes também lembrados por Bosi e que, avaliados apenas do ponto de vista político, devem causar arrepios.
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Analisando específicamente o caso de Vargas Llosa (em artigo que consta do livro No bosque do espelho), o argentino-canadense Alberto Manguel chegou a uma fórmula sintética para explicar esses casos que considera raros, mas não únicos, na história da arte: para ele, Llsoa é um escritor que não aprende com a própria obra.
Há dois Vargas Llosa, absolutamente contraditórios, defende Manguel: o escritor crítico de A Cidade e os Cachorros e o político que escolheu ser discípulo de Margaret Thatcher e que aceita anistiar os militares peruanos envolvimos na repressão ditatorial. Este é o Vargas Llosa que considera inevitável e mesmo necessária a destruição da cultura indígena, em oposição ao que denuncia, com sua obra, este tipo de violência contra as sociedades mais frágeis.
O título do ensaio de Manguel sobre Vargas Llosa tem o poder de síntese das metáforas reveladoras: “O Fotógrafo Cego”, aquele que registra imagens cujo significado não é capaz de compreender completamente.
Para Manguel, o Vargas Llosa escritor não pode ser descartado, mas o Vargas Llosa pessoa é “abominável”. Em paralelo ao Vargas Llosa que não entende o que escreve, há o leitor que não aprende quando lê: “Comparo ato de ler com o ato erótico: como é possível que o ato de amor não converta a pessoa em alguém melhor? Poucos de nós mudamos de vida quando ficamos diante de uma obra de arte, mas a culpa não é dela.”
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