Era uma vez uma “boys band” como qualquer outra, daquelas que arrastam multidões de meninas à catarse, bem mais por conta dos atributos físicos dos rapazes da banda que por suas qualidades musicais. O quinteto inglês Take That era o favorito da hora no início dos anos 1990. Fazia uma panaceia de pop, rhythm’n’blues e dance music, mais passos de break dance rapinados do hip-hop e os visuais tipo academia de ginástica dos meninos. O líder era o loirinho Gary Barlow, mas quem fez sucesso mesmo depois do final da banda, em 1996, foi Robbie Williams, futuro campeão de vendagens em carreira solo.
Voltemos a 2010. O videoclipe se chama Shame. O pique é de filme de caubói com fundo musical country. Mas não se trata de um faroeste à antiga, estamos mais próximos do romantismo gay dos vaqueiros de Brokeback Mountain (2005), de Ang Lee. Dois caubóis robustos, pré-quarentões, dançam com as respectivas namoradas, mas se observam por cima dos ombros delas. Ao final da noitada, preferem a companhia um do outro.
“Eu escrevi uma letra na minha cabeça, mas as palavras eram tão rudes/ sobre um homem de quem não posso me lembrar”, canta um deles, o barbudo, ou o outro (nem sempre os lábios sincronizam com a canção). Compreende-se que as cenas são de um reencontro, muitos anos depois de uma ruptura – bem Brokeback Mountain, outra vez.
A cena corta para a beira de um lago, onde os mancebos brincam de atirar pedrinhas. Trocam longos e lânguidos olhares, afagam-se, sorriem. Tiram camisas xadrez, camisetas de esportistas (há tatuagens “modernas” nas peles nuas), parecem se preparar para cair n’água – mas a câmera não esclarece o que acontece depois. “Que vergonha, nós nunca escutamos/ eu lhe falei pela televisão/ e tudo que ficou para trás foi o preço que pagamos/ gasta-se uma vida assim, oh, que vergonha”, cantam, uníssonos, no refrão.
O pré-quarentão tatuado é Robbie Williams. O barbudo, menos louro que em 1990, é Gary Barlow. O clipe marca a volta do Take That, reunido com a presença de Robbie pela primeira vez desde 1996. As intenções autobiográficas parecem evidentes, tanto quanto o subtexto (ou o texto) homossexual. As adolescentes de 1993 talvez não suspeitassem, mas sempre foram correntes os rumores sobre homossexualidade entre os Take That (e eles, sejamos justos, pareciam gostar da ambiguidade).
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Robbie casou-se com a atriz Ayda Field no dia 8 de agosto passado, mas o que teria uma coisa a ver com a outra? A intenção homossexual de Shame é explícita, a menos que se queira compreender a canção chamada “vergonha” e o clipe (e o filme Brokeback Mountain?) como fábulas sobre o companheirismo masculino.
Ricky e Cia
Seja como for, algo parece se mover na floresta densa das (ex-) boys bands. Há poucos meses, o porto-riquenho Ricky Martin se assumiu publicamente homossexual, quase duas décadas depois do auge da histeria causada por sua banda, Menudo, antecessora latina dos Take That. “Não se reprima, não se reprima, não se reprima”, aconselhavam em 1984, algo tensos e talentosos, os meninos de Porto Rico.
As mensagens pop trazidas por essas bandas (e por suas congêneres brasileiras, tipo os Dominó e os Polegar de Gugu Liberato) foram ambíguas no passado, e não deixam de ser em 2010. Uma nova cortina, no entanto, tem sido aberta por artistas como Ricky, Robbie e o menos bem-sucedido Gary.
Atos como a saída de armário de Ricky e o clipe homorromântico de Robbie e Gary podem ser interpretados como “decadentes” (eles o fariam se estivessem no auge do sucesso e da idolatria?). Mas sua mera existência explica que o picadeiro ilusionista da indústria musical não é mais o mesmo – se antes os garotos (e suas fãs enlouquecidas) pareciam padecer de alguma crise de identidade, hoje é a própria indústria musical que não parece mais saber quem é.
Quanto às engrenagens do showbiz, será que é impossível agradar e encantar sem mentir e omitir? E, quanto aos garotos, se ídolos pop do passado hipnotizaram você escondendo e camuflando suas identidades (ou parte delas), quem garante que os do presente não façam o mesmo?
Talvez detalhes como esses não tenham importância nem sejam dignos de nota, mas que os caubóis de hoje em dia parecem um pouco menos infelizes que os de outrora, ah, parecem. Tanto, talvez, quanto parecem um pouco menos felizes os rapazes das bandas alegres de hoje em dia – e, em especiais, adolescentes quase imberbes e aparentemente sem desejos próprios como Justin Bierber, Luan Santana, Fiuk etc.
*Pedro Alexandre Sanches é jornalista e crítico musical. Escreve no Opera Mundi e no seu blog pessoal.
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