O 31 de março no Brasil nos recorda o período de terror que perdurou por 21 anos (1964-1985), e que foi instaurado com a tomada do poder pelos militares através de um golpe de Estado.
Um documento do arquivo histórico diplomático do Ministério das Relações Exteriores da Itália (Farnesina), ao qual Opera Mundi teve acesso, joga luz nas questões não somente políticas entre o Brasil e a Argentina daqueles anos.
Artur da Costa e Silva e Juan Carlos Onganía eram amigos de longa data e se conheceram em 1952, quando ambos ainda eram coronéis. Isso é o que revela um informe de 1977 enviado pelo ex-embaixador italiano Eugenio Prati à chancelaria da Itália.
No documento, Prati tenta esclarecer alguns pontos sobre um encontro entre os dois militares. Além de revelar a longínqua amizade, o ex-embaixador escreveu que, no verão de 1965, Onganía viajou ao Rio de Janeiro para visitar Costa e Silva. Na ocasião, o argentino tinha sido promovido a comandante do exército do seu país, enquanto o amigo brasileiro havia assumido o Ministério da Guerra no governo de Castelo Branco.
O documento faz parte de uma série de oficíos inéditos, obtido com exclusividade por Opera Mundi, cujo sigilo foi retirado em 2015. Eles podem ser encontrados no Arquivo Histórico Diplomático do Ministério do Exterior da Itália, a Farnesina.
Durante o encontro, os generais teriam articulado um pacto secreto entre Brasil e Argentina na “luta anti-subversiva”. Escreve Prati: “naquela ocasião, muito se falou de um suposto pacto secreto que os dois generais teriam concluído, o qual previa a possibilidade de intervenção militar conjunta nos países latino-americanos ameaçados pela subversão comunista”.
O italiano esclarece que, diante do vazamento dessa iniciativa, a informação foi desmentida e caiu no esquecimento. No entanto, diante da posse de Costa e Silva como presidente, em 1967, surgiu a preocupação de que os dois retomassem a articulação militar conjunta.
Essa articulação de repressão internacional conjunta aconteceu dez anos depois, em 1975, quando a primeira reunião no Chile se tornou marco de criação da Operação Condor: uma rede das ditaduras do Cone Sul para controlar os exilados e trocar prisioneiros formada pelos serviços de inteligência dos regimes da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, e que contava com o apoio da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA).
“Eu sempre disse que, apesar de o Brasil nunca ter assinado a ata da Operação Condor, foi o aparelho repressivo brasileiro que criou a prática daquilo que depois veio a ser essa aliança”, disse Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), a Opera Mundi.
Segundo Krischke, o aparelho de repressão contava com uma “grande parceria” com os argentinos. O presidente do MJDH explica que a primeira operação documentada de repressão transnacional foi a do coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório, que foi preso em Buenos Aires em dezembro de 1970.
Militante histórico dos direitos humanos, Krischke disse que o segundo caso de repressão transnacional envolveu o jornalista brasileiro Edmur Peres Camargo, preso em Buenos Aires e levado ao Brasil, onde desapareceu.
Arquivo Público Farnesina
Informe italiano trazia a biografia do general Costa e Silva
“Visto que o Brasil não processou seus torturadores, nós protocolamos uma queixa crime na Argentina, para que o caso fosse investigado por lá”, disse o gaúcho de 84 anos.
Para ele, o documento inédito da Farnesina “é fantástico”, pois “não há registro histórico dessa amizade entre o Onganía e o Costa e Silva”. “Durante os Anos 60, houve uma aproximação muito grande entre o Brasil e a Argentina, isso acontece também porque militares argentinos vieram fazer cursos aqui no Brasil, especialmente na Escola Superior de Guerra, e militares brasileiros foram fazer cursos lá”, explicou ele a Opera Mundi.
Costa e Silva e Ongania
Meses antes, em decorrência de uma visita privada que Costa e Silva faria à Itália entre os dias 31 de dezembro de 1966 e 6 de janeiro de 1967, o gabinete de assuntos políticos do Ministério das Relações Exteriores do país europeu preparou um informe sobre o ditador brasileiro.
Intitulado “Visita na Itália, em caráter particular, do presidente dos Estados Unidos do Brasil, Marechal Artur da Costa e Silva”, datado em dezembro de 1966, o informe trazia a biografia do general. Uma anotação a lápis no alto do documento diz: “informações dadas pela embaixada do Brasil em Roma”.
O documento, além de mencionar que Costa e Silva havia “restabelecido a democracia” no país, citava outro detalhe sobre a vida do ex-presidente. Ele era oficial honorário do Estado maior da Argentina.
Foi durante o governo de Costa e Silva que, em 13 de dezembro de 1968, foi decretado o Ato Institucional nº (AI5), que deu início ao período mais duro da Ditadura Militar no Brasil, no qual os direitos políticos foram suspensos, o Congresso fechado e a repressão prendeu, matou e desapareceu com militantes políticos e opositores ao regime.
O mandato de Costa e Silva foi contemporânio à ditadura liderada por seu amigo Onganía na Argentina. O militar argentino tomou o poder após o golpe de Estado de 1966 [que a direita do país costuma chamar de “Revolução Argentina”, como faz a direita brasileira com o golpe de 1964], que derrubou o presidente constitucional Arturo Illia.
Onganía se manteve no poder até 1970 e foi sucedido por outros dois ditadores militares: Roberto Levingston (1970-1971) e Alejandro Lanusse (1971-1973), até a vitória de Héctor Cámpora nas eleições presidenciais de 1973, que iniciou um hiato democrático, porém cheio de conflitos, antes de a Argentina cair em seu último período ditatorial [entre 1976 e 1983, o regime liderado pelo general Jorge Rafael Videla].
“A ditadura de Onganía é muito parecida com a brasileira em termos de tortura, repressão e perseguição aos intelectuais, professores e ao movimento político. Eles viviam uma fuga de cérebros, como foi chamada à época”, disse à reportagem Samantha Quadrat, professora de história da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora da Operação Condor.
Para Quadrat, a Condor se formou porque esses “homens se conheceram em outras circunstâncias, fizeram escolas e cursos em comum. E isso permitiu que eles formassem não apenas um pensamento comum, mas também laços de amizade, como demonstra esse documento”.
Segundo ela, o documento da Farnesina é “extremamente importante” por trazer um “detalhe novo e muito relevante sobre a formação das perseguições antes de 1975, ano em que a Condor é oficializada como rede de repressão conjunta”.