Documentos inéditos encontrados no Arquivo Histórico Diplomático do Ministério do Exterior da Itália (Farnesina), mostram que ditadura militar brasileira, por meio do Itamaraty, pediu ao então governo italiano que censurasse duas publicações que denunciavam o clima de terror, as torturas e as várias violações dos direitos humanos sofridas por dissidentes políticos no país sul-americano em 1971. Um ano antes, a embaixada havia chegado a oferecer propina para barrar evento que aconteceu em Milão.
Em resposta a uma solicitação enviada em 7 de abril de 1971 pela embaixada brasileira que pedia ao governo italiano que suspendesse a circulação de duas publicações – Dossier sobre o Brasil e o Boletim informativo da Resistência Brasileira -em 3 de maio de 1971, disse que “os jornais não podem ser sujeitos a censura”.
O informe deixa claro à ditadura brasileira, que tentava importar sua censura ao solo estrangeiro, que, segundo a legislação italiana, “basta cumprir com as regras da lei de imprensa para poder colocar no papel o próprio pensamento político sem que as autoridades governamentais possam impedi-lo”. O órgão ainda citou o artigo 12 da Constituição local, segundo o qual “todos têm o direito de expressar livremente a própria opinião.”
O informe faz parte dos documentos inéditos encontrados pela reportagem de Opera Mundi no arquivo da Farnesina, cujo sigilo foi retirado em 2015.
No documento enviado a Marco Fortini, conselheiro da Farnesina, a embaixada brasileira descreve as publicações como “escandalosas e falsas”, que visam “difamar e caluniar a realidade do Brasil” e “solicita [ao governo italiano] providências para que seja sustada a circulação das mesmas”.
Diplomacia brasileira ofereceu dinheiro em troca de silêncio
Mas essa não era a primeira vez que a embaixada brasileira, cujo embaixador na época era Carlos Martins Thompson Flores, havia tentado aplicar a censura na Itália. No início de 1970, o comitê italiano “Europa-América Latina” havia entregue ao então papa Paulo VI um dossiê sobre laicos e religiosos que tinham sido torturados no Brasil.
O Comitê tinha organizado para o dia 13 de abril daquele mesmo ano uma conferência chamada “Repressão e tortura no Brasil”, no Piccolo Teatro, em Milão. Dois dias antes do evento, um emissário da embaixada brasileira procurou Marcella Glisenti, representante do Comitê, e “lhe ofereceu de tudo, inclusive dinheiro, em troca do cancelamento da conferência”. A oferta foi noticiada pelo jornal Il Giorno, cujo exemplar se encontra na pasta “jornais locais – 1970”, do arquivo da Farnesina.
A notícia foi confirmada no mesmo dia por Glisenti. Em nota publicada pela agência Ansa, a italiana informou ainda que, diante da proposta, “o comitê tinha levado em consideração pedir em troca a libertação de um preso político que tinha tentado o suicídio após ser torturado (o documento não informa o nome), mas que, repentinamente, as tratativas foram interrompidas”.
Dos documentos encontrados no arquivo histórico da Farnesina, essa teria sido a primeira de uma série de tentativas de censura a eventos que aconteceram na Itália entre 1970 e 1971 e que denunciavam as atrocidades cometidas pelo regime militar brasileiro.
Um outro documento ao qual a reportagem teve acesso é uma nota em que a diplomacia brasileira pede ao governo italiano que impedisse que Jean Marc von der Weid, ex-preso político exilado, participasse de conferências organizadas no país. Apesar de a nota não estar assinada, ela traz uma anotação escrita a mão que diz “do embaixador do Brasil em 2 de março de 1971” (na época, o cargo ainda era ocupado por Thompson Flores).
Um mês depois, a nota virou um ofício de três páginas e foi mandado pela embaixada no dia 23 de abril à Farnesina. Só que, desta vez, o governo brasileiro incluiu outros dois nomes na lista de pessoas que deveriam ser impedidas de falar publicamente na Itália: além de Jean Marc, René Louis Laugery de Carvalho e Roberto Antonio de Fortini. Eles faziam parte do grupo de setenta presos políticos que haviam libertados em troca do embaixador da Suíça no Brasil, Giovanni Enrico Bucher, sequestrado no Rio de Janeiro em setembro do ano anterior sob o comando de Carlos Lamarca, da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
Os três estavam participando de várias palestras pela Itália para denunciar a repressão e as torturas subidas pela ditadura militar brasileira. A embaixada estava fazendo o possível para evitar que o evento organizado em Roma naquele mês, na livraria Paesi Nuovi, repetisse o enorme sucesso que tinha acontecido em Milão no dia 19 de abril, onde trezentas pessoas se reuniram para ouvir os ex-presos políticos. Segundo o documento, naquela ocasião, “foram feitas referências desairosas ao governo brasileiro”.
Para a diplomacia brasileira em Roma, os três não passavam de “terroristas expulsos do país” e, para provar que o “governo brasileiro seguia uma linha humanitária e de respeito à vida” (sic), o documento citava a decisão da junta militar que tinha “aceito trocar os setenta criminosos condenados pela justiça brasileira pela liberdade de Bucher”.
Associação da ESG e a tentativa de “boca livre” no país
Os documentos encontrados no arquivo histórico da Farnesina mostram que algumas das tentativas de corrupção através da diplomacia nasceram em solo brasileiro. Algumas “mamatas” chegaram a atravessar o oceano Atlântico, mas foram confrontadas e negadas pelo governo italiano.
Uma troca de correspondências que aconteceu entre os meses de maio e outubro de 1966 mostra como uma delegação da Associação de Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG) tentou uma “boca livre” no país, mas não teve o pedido atendido pelo governo italiano.
Em maio, o então embaixador da Itália no Rio de Janeiro, Eugênio Prato, enviou o telegrama número 1.191, no qual avisava o Ministério do Exterior italiano que o general do exército João Carlos Gross, também presidente da entidade, lhe havia escrito uma carta na qual descrevia as finalidades da associação e pedia “quais assistências e facilitações” o governo italiano poderia oferecer a uma delegação de 30 diplomados diante de uma possível visita à Itália.
Segundo Prato, o presidente da associação o informou que a comitiva também viajaria a Iugoslávia, Grécia, Turquia e Israel e que esses países dariam assistência total ao grupo, incluindo hospedagem, alimentação e transporte interno.
Segundo o telegrama 1935, de 17 de agosto, o Ministério da Defesa italiano aprovou a visita, mas afirmou que não poderia arcar com despesas financeiras para o governo. Dia 21 de setembro, Prato mandou o telegrama 2.205, no qual dizia que o presidente da associação agradeceu a atenção dada e aproveitou para pedir novamente ao Ministério da Defesa italiano que este efetuasse as reservas nos hotéis em Roma e nas outras cidades que visitariam.
No dia seguinte, o embaixador Prato recebeu o telegrama 116/482 com a resposta da Farnesina. “Sinto muito dever comunicar que, visto o elevado número de componentes e a longa permanência no país, não é possível que este Ministério assuma o substancial encargo financeiro diante de uma hospitalidade completa”, diz o documento. Para a delegação foi oferecido um ônibus, um oficial à disposição e a possibilidade de comer nos restaurantes (bandejões) do exército.
Siseno Sarmento, na época general de divisão, consta na lista da “boca livre”. Três anos mais tarde, em 1969 e já no comando do I Exército, no Rio, Sarmento criou o Centro de Operação para a Defesa Interna (CODI), que se transformou no Departamento de Operações Internas (DOI), mais conhecido como DOI-CODI, órgão de repressão que torturou e assassinou dissidentes políticos.
“Conjunto de documentos é um cardápio de horrores”, diz cientista política
Para Glenda Mezzaroba, doutora em ciência política pela Universidade de São Paulo e autora do livro Um acerto de contas com o futuro – A anistia e suas consequências: um estudo do caso brasileiro (Humanitas, 2006), “os documentos mostram que o Itamaraty estava envolvido até o pescoço com a ditadura e não se constrangeu em repetir atitudes autoritárias, violentas, e, obviamente, antidemocráticas dos ditadores”, disse.
Em conversa por telefone, Mezzaroba afirmou que os documentos encontrados pela reportagem são de extrema relevância porque são de autoria de uma instituição estrangeira. “É um olhar estrangeiro sobre uma realidade que está acontecendo no Brasil, o que confere a sua perspectiva distinta porque, obviamente, durante aquele período a documentação produzida aqui estava contaminada pela lógica da ditadura.”
“Este conjunto de documentos é um cardápio de horrores que evidencia o que havia de pior. Temos tentativas de corrupção, tentativas de censura, a ação equivocada do Itamaraty contra o que é esperado de um corpo diplomático e a mentira descarada em relação ao Jean Marc, que foi preso, levado ao Dops e torturado. É tudo muito grave e vergonhoso”, disse.