Em carta enviada ao Ministério do Exterior da Itália, em fevereiro de 1970, Alessandro Tassoni, então embaixador italiano no Brasil, tenta esclarecer ao seu governo acerca da prática de tortura contra opositores políticos cometida por agentes da ditadura militar brasileira (1964-1985), apontando que, naquele momento, os torturadores eram protegidos pela tacita omertá – “lei do silêncio”, na gíria mafiosa – dos que viam essa prática como uma consequência da luta entre o bem e o mal.
“A tortura como ferramenta para erradicar a subversão é obra de uma minoria de carrascos profissionais facilmente isolados, mas que são protegidos pela tácita omertà dos que veem a tortura como uma consequência da luta entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas. Essa abordagem maniqueísta de choque entre autoridade e subversão, que dá aos fanáticos uma justificação sem escrúpulos, é intrinsecamente deplorável”, escreve.
Ao citar o código de honra das organizações criminosas mafiosas – omertá – Tassoni lembra que nenhum torturador da era Vargas foi punido até então.
O ofício de seis páginas intitulado “A sociedade brasileira, a guerrilha urbana e o caso das torturas”, faz parte de uma série de documentos inéditos encontrados pela reportagem de Opera Mundi no Arquivo Histórico Diplomático do Ministério do Exterior da Itália (Farnesina), cujo sigilo foi retirado em 2015.
No texto, o embaixador lembra que as várias denúncias de tortura a presos politicos que haviam sido feitas por intelectuais católicos ligados ao comitê italiano “Europa-América Latina” no inicio daquele ano, haviam levantado polêmica no continente europeu, mas no Brasil, tinham passado em silêncio.
Tassoni se questiona se esse silêncio era devido a uma suposta insensibilidade da sociedade ou o redimensionamento dos casos a episódios esporádicos e cita dois fatores que poderiam ajudar a entender a “fúria contra os ativistas revolucionários”: o fato de eles serem vistos por seus algozes como delinquentes comuns – para os quais a tortura sempre esteve em vigor – ou de uma classe superior – o que desencadearia um sentimento de vingança social alimentado pelo baixo nível intelectual e cultural dos torturadores.
Para o italiano, somente um forte debate politico poderia por fim a tortura.
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Essa não era a primeira vez que a Farnesina mostrava preocupação com o aumento das medidas repressivas no Brasil. Em 17 de dezembro de 1968, quatro dias após o então presidente Arthur da Costa e Silva ter assinado o Ato Institucional número 5 (AI-5), o ex-ministro Pietro Nenni (líder do partido socialista italiano) mandava um telegrama à embaixada italiana no Rio, na época comandada por Eugenio Prato.
Na mensagem, Nenni pedia que informassem ao governo brasileiro que golpes de Estado e “medidas contra a legalidade democrática” despertariam “viva emoção na opinião pública e nos círculos parlamentares, prejudicando o atual processo de relações sempre amistosas entre Itália e Brasil”.
No mesmo documento, Nenni também pedia informações sobre eventuais italianos vítimas de medidas repressivas.
O AI-5 foi o mais perverso de todos os atos decretados durante o regime militar. A partir dele, o Congresso foi fechado, políticos cassados e a censura foi estabelecida. A repressão entrou de vez no cotidiano brasileiro.
Arquivo Público Farnesina
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A preocupação do líder do partido socialista italiano não era sem fundamento. O quadro repressivo se agravou ainda mais em 1969 com a criação da Operação Bandeirantes (Oban). As prisões aumentaram e, consequentemente, as torturas também.
Um ofício enviado em 27 de julho de 1970 pela representação permanente da Itália na Organização das Nações Unidas (ONU) ao Ministério do Exterior italiano informava que um grupo de juristas internacionais havia divulgado um relatório sobre maus tratos e torturas a prisioneiros políticos no Brasil – 12 mil, segundo os juristas.
Tortura e cegueira
Outro documento encontrado por Opera Mundi mostra que, mesmo diante do quadro de denúncias que começava a inundar a imprensa estrangeira, empresários italianos que viviam no Brasil fizeram campanha a favor dos militares e chegaram a escrever uma carta, que foi entregue ao presidente Aldo Moro, afirmando que no país não existia tortura.
Escrita em 30 de agosto de 1970 e assinada por Vivaldo Pagni em papel timbrado com o nome da empresa Plasticos do Brasil S.A, a carta ressalta a origem toscana do presidente Emílio Médici para afirmar que se sentiam “amargurados” em saber que é a Itália a “responsável pela campanha caluniosa e injusta” contra o Brasil.
A carta ainda diz que havia uma ação de “culpar” o governo brasileiro “por ter levantado a bandeira contra o comunismo e a subversão”. Pagni diz que ninguém nunca falou sobre essa história de tortura a ele.
Anos mais tarde, precisamente em 4 de junho de 2007, Pagni foi homenageado pela Assembleia Legislativa de São Paulo, em sessão solene do dia da comunidade italiana.
No entanto as prisões e perseguições de personalidades, entra elas algumas italianas, como as do Jean Marc Von der Weid, padre Giorgio Callegari, Giulio Vicini e Maurice Politi vão na contramão da defesa que o empresário realizou na carta ao governo da Itália.
Prisões políticas de italianos e a Farnesiana
Entre os documentos encontrados no arquivo histórico estavam pastas dedicadas às prisões de italianos, dos quais a Farnesina acompanhou de perto entre os anos 1968 a 1971. O padre Callegari, por exemplo, foi um dos primeiros a ser preso.
A diplomacia italiana abriu uma pasta com seu nome em 1968 quando ele tentou mandar, através da mala diplomática italiana, artigos para o exterior sobre as prisões que estavam sendo efetuadas no Brasil.
Segundo os documentos encontrados, o cônsul na capital paulista chegou a pedir a autorização do envio, mas o pedido foi negado pelo governo italiano.
Callegari foi preso em novembro de 1969, quando policiais do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS) invadiram o convento em São Paulo. Durante os primeiros anos da ditadura, a congregação assumiu um importante papel na resistência às forças armadas, dando inclusive cobertura à Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo guerrilheiro comandado por Carlos Marighella, um dos principais opositores do governo militar.
“O padre dominicano foi tão torturado que motivou a repulsa pública do Papa Paulo VI”, diz documento assinado pela ALN, encontrado no fascículo de Callegari.