“O Brasil optou primeiro pelo caminho da reparação. 19 anos depois do caminho da verdade e agora falta o caminho da justiça”, defendeu Maurice Politi, que militou contra a ditadura militar brasileira (1964-1985) e acabou conhecendo seus “porões”. Para ele, o país viveu um “período de esquecimento” quando quis “varrer para debaixo do tapete” os anos de chumbo.
Politi tinha 21 anos quando foi preso pela Operação Bandeirantes (OBAN) em 20 de março de 1970. Ele era militante da organização guerrilheira Ação Libertadora Nacional (ALN), fundada por Carlos Marighella.
Um ano após sua detenção, em 1971, a família de Politi, para salvá-lo das torturas praticadas pelos agentes da repressão, encaminhou um pedido de asilo político ao governo italiano. Seus tios, que moravam no país europeu, o acolheriam. Após meses de tratativa, o pedido foi negado porque o caso não se enquadrava na convenção de Genebra, uma vez que ele já estava preso.
A troca de mensagens da tratativa está descrita em um documento de 1971 chamado “Asilos políticos: expulsões e pedidos de extradições”, obtido com exclusividade pela reportagem de Opera Mundi. Os ofícios fazem parte de uma série de documentos inéditos, cujo sigilo foi retirado em 2015. Eles podem ser encontrados no Arquivo Histórico Diplomático do Ministério do Exterior da Itália, a Farnesina.
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O documento mostra correspondências trocadas entre a embaixada italiana no Brasil, a sede diplomática da Itália em Tel Aviv, cidade de Israel, e o Ministério das Relações Exteriores do país europeu.
Politi, que foi torturado física e psicologicamente, passou quatro anos detido em penitenciárias do estado de São Paulo, sempre trocando de uma para a outra: DOI-Codi/SP, Deops/SP, Presídio Tiradentes, Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru), Penitenciária Regional de Presidente Venceslau e Presídio do Hipódromo.
Descendente de uma família judia, nascido no Egito, tendo imigrado ao Brasil quando ainda não havia completado 10 anos, o ex-preso político virou apátrida porque estava preso quando devia fazer o juramento de opção pela cidadania brasileira. Depois de quatro anos preso, foi expulso do país em 1975 devido a seu status de imigrante. Exilado em Israel por quatro anos, voltou ao Brasil em 1980, com a Lei da Anistia, e, em 1989, virou definitivamente brasileiro.
No telegrama 748, de 1 de abril de 1971, enviado à Farnesina com cópia ao consulado da Itália de São Paulo, Alessandro Tassoni, na época embaixador italiano no Rio de Janeiro, descreve o caso como “doloroso” e “agravado” pelo fato de Politi ser preso como apátrida.
“O caso tem aspectos humanos dolorosos, agravados pela perspectiva de que, caso o jovem estudante não encontre um país disposto a acolhê-lo, ficará detido indefinidamente nas prisões brasileiras”, diz o diplomata.
Opera Mundi, que vem publicando uma série de reportagens baseadas em documentos exclusivos e inéditos encontrados no arquivo da Farnesina, conversou com Politi, que não sabia da existência desses documentos.
Agora brasileiro, o ex-preso político depôs como testemunha na Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2013, e é defensor da preservação da memória histórica daqueles anos. Não por acaso fundou em 2009 o Núcleo de Preservação da Memória Política, em São Paulo.
Confira a entrevista na íntegra:
Opera Mundi: Você tinha conhecimento desses documentos sobre o pedido de asilo à Itália?
Maurice Politi: Não, não conhecia e nem nunca os tinha visto antes. Eu sabia que o pedido tinha sido feito naquela ocasião, mas não sabia dos detalhes.
Maurice, você foi preso em 1970, em plena ditadura militar brasileira. Qual papel você desempenhava na resistência ao regime para ser preso?
Eu militava na Ação Libertadora Nacional Uma organização de resistência armada contra a ditadura chefiada por Carlos Mariguella. Dentro dela, desempenhei diversos trabalhos, fiz parte dos quadros e da logística da organização.
Durante esses anos em que esteve na resistência, chegou a conhecer Carlos Lamarca?
Não, não cheguei a conhecê-lo, mas conheci o Joaquim Câmara Ferreira, que o substituiu. Lamarca foi morto por agentes do regime, com sete tiros, em novembro de 1969. Fui preso em março de 1970, na Operação Bandeirantes, e levado para o DOI-Codi, para o Deops e depois para o presídio Tiradentes. A um certo momento me chamaram de volta ao Deops onde me disseram que não era brasileiro, mas estrangeiro.
Por que? Você foi preso como brasileiro?
Sim, no momento da prisão entreguei os meus documentos e essa informação de eu ser estrangeiro passou batida por eles. Por um período, o Brasil sempre foi um país acolhedor de imigrantes, e naqueles anos (entre 1960 e 1970) bastava residir e trabalhar por cinco anos no país para dar entrada diretamente com o pedido de naturalização brasileira. Meus pais fizeram isso.
Arquivo Público Farnesina
Documento com pedido de asilo político feito ao governo da Itália para Politi, preso em 1970 no Brasil
O pedido era estendido para toda a família, só que os menores de idade recebiam uma naturalização provisória. Em junho, cerca de três meses após minha prisão, voltei ao Dops e fui recebido por um oficial da delegacia dos estrangeiros, que me disse: “você nos mentiu, não é brasileiro, é apátrida”. Naqueles anos todo estrangeiro enquadrado na lei da segurança nacional era expulso do país. Tive que assinar o decreto de expulsão porque quando fui preso tinha 21 anos.
E como descobriram que você não era brasileiro?
Porque eu tinha entrado com o pedido de opção de nacionalidade, mas os avisos de comparecimento eram mandados pelos correios e nunca os recebi porque, obviamente, estava preso. Só que a delegacia de estrangeiros publicava um anúncio no jornal onde pedia aos estrangeiros – citando os nomes – que comparecessem à Polícia Federal para prestar o juramento para ser brasileiro.
Minha família não tinha muitos recursos então tínhamos um advogado nomeado pelo juiz auditor militar, mas não era um bom advogado. Foi ele que propôs essa história do asilo político, baseando-se na convenção de Genebra, mas errou porque a convenção não é para pessoas que já estão presas, mas para aquelas que estão sendo perseguidas.
Com o pedido, ele foi encaminhado à Itália. Houve algum motivo especial por ser entregue ao governo italiano?
Porque eu tinha um tio muito rico que morava em Florença, era irmão do meu pai. Ele disse que daria abrigo se o pedido fosse aceito pela Itália. Isso foi usado como uma possível referência caso as autoridades italianas quisessem saber como eu me manteria no país.
Nos documentos que Opera Mundi teve acesso nos arquivos da Farnesina, estava escrito que já tinha sido realizado um pedido de asilo a Israel, mas que havia sido negado.
Na verdade o que aconteceu foi que minha irmã ficou muito ruim quando fui preso, nós éramos muito chegados. Meu pai, que era severo, a proibiu de me visitar na prisão e a mandou para Israel, somos judeus, para fazer a universidade por lá, pois não queria que ela se metesse em política também. Ela tinha sido contatada para saber se me daria abrigo, mas tinha recém chegado ao país, mas não sei quem fez esse trâmite, se foi o mesmo advogado que fez o pedido à Itália.
Cumpri os quatro anos de prisão. Quando me soltaram, me prenderam de novo por mais três meses por causa do processo de expulsão. Passei aqueles meses sem saber se era preso político, preso comum, fiquei em uma cela com estrangeiros que seriam expulsos.
Meu advogado – que já não era aquele do pedido de asilo na Itália – entrou com pedido de liberdade condicional. Me deram, mas tinha de ir toda semana ao Dops. Vivi isso por um ano inteiro. Eles queriam me expulsar, mas não sabiam para onde.
No final, você acabou indo para Israel?
Sim, minha irmã já estava lá há quatro anos e foi mais fácil para me receber, mas não fui como exilado, me auto expulsei. No avião comigo estavam policiais. Fiz escala em Roma e de lá segui para Israel.
Até quando você ficou no país?
Fiquei quatro anos e voltei para o Brasil no começo dos anos 1980, após a Lei da Anistia.
Nesse retorno, ingressou no Brasil como estrangeiro então?
Sim, entrei como cidadão de Israel e vivi por quatro anos como estrangeiro. Durante esse tempo entrei com processo para reverter a expulsão e, em 1989, virei cidadão brasileiro.
Sua volta aconteceu por conta da Lei da Anistia. Como a avalia hoje, deveria ser revista para que torturadores possam ser processados?
A Lei da Anistia não tem que ser revogada, ela tem que ser melhor interpretada. O artigo que diz que crimes anistiados são também os “conexos” aos crimes políticos. Esta palavra, conexo, está fora de seu contexto. Querem sustentar assim que crimes contra a dignidade humana e a vida tais como espancamentos, tortura, estupros e mortes são conexos aos assim chamados de “crimes políticos”.
E o que pensa sobre a nossa justiça de transição?
Um colega gaúcho diz sempre uma coisa: o Brasil não teve justiça de transição, mas de transação. Desde a Constituinte de 1988 até 2007, não se falou do tema da tortura, não se falou sobre a ditadura, quem sempre falou foi a Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos. O país só começou a falar sobre esses temas em 2007, após a publicação de um livro do governo chamado “Direito à memória e a verdade”, que Lula entregou para os familiares. Depois, em 2008, pouca gente sabe, mas teve uma audiência pública em Brasília convocada pelo Ministério da Justiça – eu participei – onde se ouviu todas as camadas da sociedade, ex presos, familiares, polícia, exército, marinha.
Então, o que houve no Brasil foi um período de esquecimento onde se tratou de varrer para debaixo do tapete aquele período, mas não quer dizer que não tivemos avanços. O Brasil optou primeiro pelo caminho da reparação. 19 anos depois do caminho da verdade e agora falta o caminho da justiça.
Como foi reviver parte da tua história escrita nesses documentos encontrados no arquivo italiano?
Eu a revivo sempre, desde 2008 faço parte do núcleo da preservação da memória política. Acho que uma das missões que tenho na vida é justamente contar a minha história para que não aconteça mais.
Para encerrar Maurice, como vê a situação política do país atualmente?
A gente tá vivendo uma guerra cultural, de narrativas mentirosas, por isso que é tão importante que pessoas como eu e outros companheiros de prisão continuem contando sobre o passado, falando a verdade. O bolsonarismo também vai deixar sequelas.