O número de vítimas da Itália na ditadura brasileira provavelmente poderia ter sido maior se a diplomacia do país europeu, por meio da embaixada no Rio de Janeiro, em colaboração com os consulados de São Paulo, Porto Alegre e Recife, não tivesse realizado uma série de articulações pela liberdade de presos políticos com nacionalidade italiana.
Isso é o que mostram os diversos fascículos sobre os presos políticos no Brasil entre os anos 1969 e 1972 encontrados por Opera Mundi no Arquivo Histórico Diplomático do Ministério do Exterior da Itália, a Farnesina. Os ofícios fazem parte de documentos inéditos, cujo sigilo foi retirado em 2015, no qual a reportagem realiza uma série exclusiva dos dados.
Durante os anos de ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), uma geração de jovens que lutava contra o autoritarismo e que se que opunha ao regime foi presa, assassinada e outras seguem desaparecidas.
Com a introdução do Ato Institucional número 5 (AI-5), no final de 1968, a repressão aumentou de maneira desmesurada, assim como as torturas àqueles que caiam nos porões militares. Para alguns, bastava pouco para ser considerado um inimigo do país, possuir panfletos de protesto, por exemplo, poderia ser uma condenação à morte em consequência da violência ditatorial.
Em 2015, um relatório publicado pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) identificou 434 vítimas do regime, quatro delas eram italianas: Antonio Benetazzo, assassinado em 1972 dentro do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) de São Paulo; Líbero Giancarlo Castiglia, desaparecido desde 1974; e Lorenzo Vinas e Horacio Campiglia foram entregues aos argentinos, onde desapareceram. Os dois foram vítimas da Operação Condor, e alguns de seus sanguinários foram condenados à prisão perpétua na Itália em 2021.
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Ao contrário do Itamaraty que, através do Centro de Informações do Exterior (CIEX), utilizava as embaixadas como agentes da repressão para espionar brasileiros contrários ao regime e que viviam no exterior, a diplomacia italiana agia para salvar das garras dos generais seus conterrâneos, como os padres Giorgio Callegari e Giulio Vicini, Tulio Vigenavi, Bruno Piola, Roberto de Fortini, Elisabeta Bonante, Francesco de Masi e Filomena Chiarello.
Além de reportar o andamento das tratativas com o governo e a Justiça brasileira para a liberação dos presos imigrantes, os ofícios também revelam as torturas e o difícil acesso dos italianos quando estavam presos nas celas do Departamento de Ordem Política e Social (Dops).
Filomena Chiarella: um mês presa no DOPS
Presa dia 9 de outubro de 1970 e levada ao Dops, local que permaneceu por cerca de um mês, Chiarella dava os primeiros passos rumo à luta armada, mas ainda não fazia parte da Ação Libertadora Nacional (ALN).
A então militante disse, em entrevista a Opera Mundi, que estava se informando sobre o papel da guerrilha durante os anos de chumbo e os métodos de repressão que devastavam os ativistas pelo país. Chiarella conta que por um “descuido” foi presa pelos militares: ao sair de um táxi, deixou cair algumas cópias de panfletos considerados “subversivos” pelo governo brasileiro, que foram denunciados pelo taxista aos policiais.
A italiana, que se tornou chef de cozinha, ainda reside no Brasil, mesmo que a possibilidade de deixar o país tenha sido discutida com o ex-cônsul italiano Marcello Mininni em São Paulo, como mostra a minuta número 10869, enviada no dia 17 de novembro de 1970, à chancelaria de Milão e à embaixada no Rio de Janeiro.
No documento, Mininni informava que a estrangeira, à época com 20 anos, havia sido liberada em 11 de novembro e que, no dia seguinte, acompanhada pela mãe, tinha ido ao consulado agradecer à assistência recebida durante o período de prisão.
No mesmo ofício, o ex-cônsul dava o parecer favorável para que a jovem voltasse à Itália e sugeria ao governo do país europeu que disponibilizasse a repatriação consular para sua família.
“Me livrei daquilo tudo porque o consulado interveio a meu favor, mas nunca deixei o Brasil, continuei vivendo em São Paulo. Foi difícil porque sabia que era vigiada mesmo depois de ter sido liberada”, disse.
A Opera Mundi, Chiarella conta que após sua prisão, e mesmo com o fim do regime militar, não costumava expor os dias que passou presa em São Paulo. No entanto, segundo ela, essa reação mudou quando viu “pessoas afirmarem que a ditadura e a tortura não existiram”, sentindo, então, na obrigação de contar sua história.
Mesmo não sendo da ALN, a italiana era obrigada a dar nomes de militantes da guerrilha aos militares, mesmo não conhecendo “praticamente ninguém”. Com o olhar marejado, Chiarella afirmou à reportagem que dizia a verdade, mas que “eles [os agentes] não queriam saber”.
Arquivo Público Farnesina
Chiarella, Vigevani, Piola e Fortini foram soltos após trâmites diplomáticos entre Itália e Brasil
“Fui torturada por dois policiais, pareciam ter a minha idade ou ser um pouco mais jovem do que eu. Lembro deles, sempre presentes. […] Aprendi na pele que era real [a tortura], que era verdade”, disse.
Tortura sem marcas: Tullo Vigevani
A história de Chiarella também se confunde com tantas outras, principalmente de presos políticos italianos. Como o caso de Tullo Vigevani, que tinha 28 anos, e sua esposa Maria Soares de Carvalho, que estava grávida, quando foram presos por atividades subversivas ligadas ao Partido Operário Revolucionário Trotskista (PORT) e pela publicação da Frente Operária.
Na prisão, Vigevani sofreu torturas durante o tempo que permaneceu preso, mas não tinha como provar, pois não haviam marcas em seu corpo, de acordo com o ofício número 07763, enviado em 18 de agosto de 1970 ao Ministério das Relações Exteriores italiano com cópia à embaixada no Rio de Janeiro.
O documento citado foi enviado pelo então cônsul em São Paulo, Mininni. Ali, ele relatava sobre a primeira visita a Vigevani, que estava detido no Dops paulista há 16 dias. “Como esperava, e com base em experiências semelhantes anteriores, os policiais do Dops tentaram adiar meu encontro com o detento, e só mudaram de atitude após intervenções diretas do comando do 2º exército”, escreveu.
Segundo o ex-cônsul, o destacamento de operações se opunha que os presos estrangeiros recebessem visita de autoridades consulares antes do “período de isolamento”, pois acreditavam que tais contatos prejudicavam os interrogatórios.
No documento de duas páginas, o italiano denuncia que Vigevani havia sido torturado, mas que não tinha como provar. “Ele se queixou por ter sido submetido a aplicações de corrente elétrica e espancamento na palma da mão direita. Tentei em vão encontrar vestígios”, relata Mininni.
Em outro ofício, datado 29 de dezembro de 1970, o então embaixador italiano no Brasil Alessandro Tassoni explicava à chancelaria da Itália o quanto era complicado o caso de Vigevani, já que ele era um “reincidente e fortemente comprometido”. “Por favor, informe o presidente da República e o vice-presidente do Conselho de Ministros, que estão interessados no caso”, aponta.
O presidente em questão era Emilio Colombo, do Partido Democracia Cristã (DC), e o vice-presidente era Francesco de Martino, do Partido Socialista Italiano (PSI). Nos anos 70, a Itália era presidida por um governo de coalizão entre essas duas forças políticas.
O italiano foi solto em fevereiro de 1972 e, em julho daquele ano, durante uma conferência em Gênova, na Itália, contou sobre as torturas que sofreu nas mãos da polícia brasileira e como conquistou a liberdade graças à intervenção da embaixada italiana no Rio de Janeiro.
Luta armada x diplomacia
Bruno Piola e Roberto de Fortini também estão mencionados nos documentos encontrados nos Arquivos Históricos da Farnesina. Ambos estavam no avião que transferiu 70 presos políticos libertados e banidos do Brasil para o exílio no Chile, em janeiro de 1971. Eles foram trocados pelo então embaixador da Suíça Giovanni Bucher, que havia sido sequestrado no Rio de Janeiro pelo próprio capitão do grupo liderado por Carlos Lamarca.
Eles haviam sido presos em agosto de 1970. Em 14 de setembro, o consulado de Porto Alegre mandou um telegrama à embaixada italiana no Rio de Janeiro informando Tassoni sobre as atrocidades que Fortini estava sofrendo. A violência só foi denunciada durante a segunda visita que tinha ocorrido após três meses de sua prisão.
Após quatro meses, em 23 de dezembro, Tassoni mandou um telegrama ao governo italiano no qual informava que Piola e Fortini estariam na lista dos presos que seriam trocados pelo embaixador. “A lista de prisioneiros a serem trocados e que atualmente está sendo negociada pelo governo brasileiro não é pública. Com todas as reservas, ressalto que na lista estariam os compatriotas Piola e De Fortini”, escreveu.
Quando aterrissaram no território chileno, o governo da Itália seguiu acompanhando o caso e prestando assistência aos dois amigos.