O presidente Hugo Chávez assinala gráfico de redução da pobreza em pronunciamento na Assembleia Nacional
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Sentados em carteiras escolares, dez integrantes de conselhos comunais do bairro 23 de Janeiro, em Caracas, discutem a criação de uma empresa para manutenção de elevadores que preste serviços na vizinhança. Os donos serão os próprios conselhos que a patrocinarem e poderão contar com financiamento e apoio técnico do governo nacional e suas instituições. “A única certeza é que a empresa será administrada exclusivamente pela comunidade”, ressalta Darwin Jaimes, do conselho Las Palmas 1320. “Nenhum governo ou empresário poderá tomar posse dela.” A aspiração não pertence apenas ao tradicional bairro caraquenho. Desde a aprovação das chamadas leis sobre o poder popular, em dezembro de 2010, muitas iniciativas semelhantes foram registradas.
Os partidos oposicionistas criticam o novo modelo, que permite ao Estado repassar recursos e atribuições diretamente a essas organizações de bairro. Na sua avaliação, tal mecanismo esvazia as administrações estaduais e municipais, nas quais mantêm forte presença, além de centralizar mais poderes nas mãos do poder executivo nacional.
“Queremos encher o país de comunas”, afirma Aristóbulo Istúriz, 66 anos, vice-presidente da Assembleia Nacional e do PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela), principal agremiação do chavismo. “O estado capitalista burguês é hierarquizado. O federal manda mais que o estadual, que prevalece sobre o municipal, que se sobrepõe aos bairros. Sob essa estrutura burocrática, está o povo, longe do poder. Nossa estratégia é achatar essa pirâmide, horizontalizá-la.”
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Unidade básica
De acordo com dados oficiais, já existem 46 mil comunas pelo país. Cada uma agrupa certa área de um bairro, na qual vivam entre 150 e 400 famílias, e elege um conselho por voto popular. A comuna, de acordo com a legislação aprovada pelo parlamento, é a nova unidade básica do Estado federal.
Recentemente foram regulamentados, com forte resistência oposicionista, diversos instrumentos de arrecadação comunal – incluindo parte dos impostos municipais e estaduais, verbas nacionais e tarifas por serviços. Equipamentos públicos de quase todos os tipos — escolas, centros de saúde, áreas de lazer — podem passar a sua tutela.
A oposição não vê com bons olhos esse caminho e tenta carimbar qualquer movimento de questionamento à democracia representativa como um ataque ao regime democrático em geral. Apesar da existência de pluripartidarismo, adversários de Chávez insistem, dentro e fora do país, em retratá-lo como uma espécie branda de tirano.
Afinal, as agremiações conservadoras não foram apeadas apenas da administração nacional. O presidente venezuelano, amparado em maioria parlamentar e sucessivas vitórias nas urnas, lhes tomou posições dominantes nas cortes judiciais, nas forças armadas, na diplomacia e em outras esferas do Estado. Chávez nunca escondeu sua intenção de levar a cabo uma revolução política, ainda que sob compromisso de fazê-la de forma “democrática e pacífica, ainda que não desarmada”, em alusão à intenção de se proteger contra golpes internos ou ameaças estrangeiras.
Os oposicionistas, porém, consideram que essa trajetória de mudança nos poderes do Estado afeta a ordem democrática e ameaça até os direitos humanos. Nenhuma instituição internacional de relevo chancela essa denúncia. A Venezuela continua a ser considerada como um país que respeita plenamente as normas da democracia. Nem mesmo a OEA (Organização dos Estados Americanos), sediada em Washington, questiona essa avaliação.
Direitos econômicos e sociais
Professor de história por profissão e ex-prefeito de Caracas ainda na IV República (regime anterior à chegada de Chávez ao poder, em 1999), Istúriz rebate pedagogicamente as insinuações sobre o suposto baixo teor democrático do processo liderado por Chávez. “Há duas concepções de democracia, é normal um embate de concepções”, salienta. “Uma delas, de origem liberal, se restringe à garantia de liberdades e direitos políticos. Não tem conteúdo social e basicamente circunscreve o papel do cidadão ao voto que delega poder a seus representantes. O salto que demos foi para o conceito da democracia participativa, que inclui as salvaguardas políticas, mas incorpora os direitos econômicos e sociais.”
Os inimigos de Chávez o acusam de solapar os fundamento democráticos, mas dificilmente se poderia apontar para qualquer instituição que tenha sido derrogada nos últimos 14 anos. Os bolivarianos mantiveram intactos os mecanismo da democracia representativa, mas foram criando novas esferas e espaços de decisão estranhos ao pensamento mais conservador.
A verdade é que a Venezuela pode exibir alguns atributos constitucionais raros. Sua Constituição prevê referendos e plebiscitos que podem ser convocados tanto pelo parlamento quanto pelo governo ou pela vontade autônoma dos cidadãos, desde que reúnam 20% dos eleitores nacionais em uma petição. Essas consultas, além de impositivas e irrevogáveis, podem também interromper o mandato de parlamentares e governantes. O próprio presidente já enfrentou parada desse naipe, em 2004, quando seu mandato foi posto à prova. Chávez manteve-se na presidência com 60% dos votos.
Nenhum país filiado à democracia ocidental possui institutos com essa envergadura em seu repertório constitucional. Alguns analistas interpretam esses dispositivos como formas de avassalar as instituições a partir da fúria plebiscitária manipulada por um governante populista. Para os chavistas, no entanto, são armas no alforje de quem apostou na ruptura com a velha política dos acordos parlamentares e de acomodação aos interesses filtrados pela burocracia estatal. Ainda que, na prática, tudo seja mais confuso e atabalhoado, o choque no terreno das ideias é real.
Mesmo compromisso
Esse debate, porém, não é confortável para a direita venezuelana. Propor a redução da participação política poderia ser uma movimentação eleitoralmente arriscada, além de contraditória para forças que querem se apresentar como campeãs de democracia. Dadas as circunstâncias, a oposição sinaliza preferir o discurso que aponta para eventuais manipulações ou restrições na implementação das garantias constitucionais.
“Não há igualdade de condições políticas”, reclama Leopoldo Lopez, do partido Vontade Popular, um dos líderes da MUD (Mesa de Unidade Democrática), aliança que sustenta Henrique Capriles na disputa pela Presidência. “O uso de recursos públicos, no campo das comunicações, é tendencioso. O jogo, apesar de democrático, está desequilibrado.”
O PSUV, no entanto, considera essas críticas como prenúncio de que a oposição pode estar se preparando para colocar sob suspeita o processo eleitoral em andamento e não reconhecer os resultados das eleições presidenciais de outubro. Chávez afirma seguidamente que respeitará o resultado das urnas, qualquer que seja o veredito. E os socialistas cobram de seus adversários o mesmo compromisso.
* Texto publicado originalmente no site Opera Mundi
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