Esta reportagem faz parte da série especial de Opera Mundi com relatos de brasileiros que viveram o fim do governo Salvador Allende e início da ditadura Augusto Pinochet, episódio que completa 50 anos em 11 de setembro de 2023.
Dezenas de pessoas, a maioria delas de cabelos brancos, se reuniram na noite da sexta-feira (18/08) num restaurante da Vila Madalena, em São Paulo, animadas por um objetivo duplo. O primeiro e mais direto é promover um bota-fora da Caravana Viva Chile, que partirá nos próximos dias de diversos locais do Brasil para testemunhar o aniversário de 50 anos do golpe de Estado aplicado contra o governo democrático do presidente chileno Salvador Allende (1908-1973), em 11 de setembro de 1973. De quebra, encontram-se na vida real, em muitos casos pela primeira vez, militantes políticos que haviam se perdido de vista no correr das décadas e começaram a se reagrupar há cerca de 10 anos, via internet.
O ponto de encontro fundamental desses brasileiros de múltiplas origens, classes sociais e profissões reside no fato de que estavam no Chile na eclosão do golpe militar que levou o general do Exército Augusto Pinochet (1915-2006) ao poder ditatorial por 17 anos. Na maioria dos casos, encontravam-se no país exilados de processo semelhante iniciado no Brasil quase uma década antes, no golpe civil-militar de 1º de abril de 1964.
Cem desses sobreviventes cadastrados na caravana irão se reunir em Santiago do Chile para visitas a sítios de memória da ditadura de 1973 e para um jantar de confraternização no próximo dia 11.
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Cercados de forte e dolorosa mitologia, dois desses sítios são o Estádio Chile, hoje rebatizado Estádio Victor Jara (em honra ao cantor e compositor ali assassinado pelos militares em 16 de setembro de 1973), e o Estádio Nacional, transformados pela ditadura recém-instalada em prisões para chilenos e estrangeiros, nos meses que sucederam o golpe.
Alguns dos presentes estiveram presos nesses locais, casos do sociólogo Ricardo de Azevedo, que ficou três dias no Estádio Chile e outros 27 no Estádio Nacional, e do cientista político e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) Nielsen de Paula Pires, que estima ter passado entre 45 e 50 dias no Estádio Nacional.
“Já voltei ao Chile duas vezes. Para ter uma ideia, não tive coragem de ir aos estádios onde estive preso. Agora eu quero ir”, revela Azevedo a Opera Mundi, um dos organizadores da caravana. “É um novo momento, um novo Chile. Não acho que o governo chileno de agora é o melhor do mundo, mas é outra coisa. Vai ser um reencontro político, mas também sentimental, afetivo, emocional, muito forte. Eu tinha 25 anos, hoje tenho 75. Tem gente aqui que eu não vejo há 50 anos, imagina a emoção que vai ser esse encontro”, disse.
Azevedo tece recordações sobre as prisões pelas quais passou: “foi muito duro. Estive preso no Brasil por um ano, três meses e meio, entre 1969 e 1970, no Presídio Tiradentes. No Chile foi mais duro. A gente dormia nas arquibancadas, num espaço coberto, mas ao ar livre, porque era aberto nas laterais, num Chile de 10 graus, sem cobertor, sem nada. Ficamos quase um mês lá, sem que a embaixada brasileira tomasse qualquer medida de defesa de seus cidadãos”.
Tanto Azevedo quanto de Paula Pires foram capturados exclusivamente pelo fato de serem estrangeiros. “Qual era a acusação contra mim? Nenhuma. Eu não tinha armas, era apenas estrangeiro, brasileiro. Fui preso, depois me expulsaram do Chile”, lembra o sociólogo, que foi denunciado por um vizinho e depois acabaria se exilando na França.
No caso de Pires, o denunciador foi o proprietário do apartamento habitado por ele, que era estudante e havia entrado legalmente no Chile, e por um colega panamenho. “Invadiram com metralhadora, gritando ‘as armas, as armas, as armas’. Que armas? Nós éramos estudantes”, declarou.
“O dono do apartamento denunciou porque devia estar com medo também. Para o Exército, quem era estrangeiro era marxista, a favor do governo marxista. Nós éramos prisioneiros de guerra. O Estado era de guerra e nós éramos os inimigos, e fomos para um campo de concentração”, contou ele.
Pedro Alexandre Sanches
Brasileiros que estavam exilados no Chile durante golpe contra Allende preparam caravana ao país
O resgate de memória das experiências vividas no Chile foi um processo paulatino para o cientista político. “Depois que saí, passei anos sem querer lembrar, falar ou ouvir falar do Chile. Foi muito difícil nas primeiras vezes que comecei a falar”, emociona-se. Ele já voltou outras vezes ao Estádio Nacional, uma delas para registrar depoimento em um documentário ainda não lançado. “O impacto é muito grande, psicologicamente foi uma cacetada. Eu tinha 26 anos quando fui preso lá”, lembra.
Numa das voltas, em 2011, Pires assistiu ao funeral oficial de Allende, que se suicidou no Palácio de La Moneda, no próprio 11 de setembro de 1973. “Saí expulso do Chile, e a primeira volta foi para o funeral de Allende, convidado pelo governo chileno”, emociona-se mais uma vez.
O Estádio Nacional é marcante para ele não só pela prisão, mas pelo fato anterior de lá ter conhecido sua futura esposa, chilena, durante um prosaico jogo de futebol. Eles se reencontrariam clandestinamente dentro do estádio, ele na condição de prisioneiro e ela vestida de enfermeira, sem poderem se comunicar verbalmente. “Aí eu soube que alguém sabia que eu estava ali. Foi tranquilizador”, explica. O exílio na Bélgica seria o próximo destino do casal, que segue unido até hoje.
Outro casal binacional é formado pelo brasileiro Ismael Antônio de Souza e a chilena Alma Ruby Hogarz Alfaro. Ele desembarcou no Chile com o grupo de 70 presos políticos brasileiros trocados pelo embaixador suíço Giovanni Bucher, sequestrado em dezembro de 1970 pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), numa ação comandada por Carlos Lamarca.
“No Chile, eu trabalhava num departamento do Ministério do Interior, que era a Direção de Assistência Social”, explica Souza. “Pouco antes do golpe, saí e fui trabalhar num restaurante que um grupo de exilados havia aberto. O dinheiro que se arrecadava era para dar uma ajuda aos brasileiros exilados que chegassem corridos da ditadura aqui.”
Foi na fase de funcionário público que Ismael conheceu Alma, assistente social que trabalhava no Ministério da Saúde. O destino do casal, após o golpe, foi o exílio na Suécia, que durou 10 anos.
Souza afirma que foi atribulada a volta para o Brasil: “voltei com a família para recomeçar a vida de novo. Eu não era de classe média, meu pai era ferroviário, a gente era de uma família de operários. Trabalhei em várias coisas e fiquei numa empresa de informática até me aposentar”. Originalmente militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Ismael voltará ao Chile na caravana, mas Alma não o acompanhará. “Já estive lá neste ano, por três meses”, ela explica.
Mais ou menos à distância, o economista e professor da PUC-SP Ladislau Dowbor observa a confraternização na condição de quem não participará da caravana, nem estava no Chile no 11 de setembro de 1973. Engajado na luta armada e membro da direção da VPR, foi preso e torturado pela ditadura brasileira em 1970 e, em seguida, incluído no grupo de 40 presos políticos libertados em troca do embaixador alemão Ehrenfried Von Holleben.
Exilado na Argélia, Dowbor havia visitado o Chile poucos meses antes do golpe: “eu estava organizando todo o apoio aos refugiados a partir da Argélia, um trabalho que na época se chamou Frente Brasileira de Informação, coordenado por Miguel Arraes. Vim para o Chile numa fase já crítica, para uma reunião com brasileiros, para decidir se seguíamos na luta armada ou não. Eu achava que não, mas fui derrotado”.
Dowbor diz que retornou à Argélia com uma avaliação relativamente otimista sobre a situação no Chile, graças à mobilização social e às manifestações que aconteciam. “Os argelinos me perguntaram: ‘e o Exército?’. Eles sabiam mais do que eu”, ri.
“O Chile virou simbólico, em termos de até onde a gente pode levar a bestialidade humana”, avalia o peso do cinquentenário prestes a se completar. Dowbor acompanha a movimentação para a Caravana Viva Chile sem se integrar a ela. “Estou cansado, com 82 anos. Mas conheço todo mundo aqui e tenho um imenso carinho. Acho esse movimento muito bonito e extremamente importante. A gente viveu essa desgraça e está sentindo o cheiro da desgraça de novo, no Equador, na Argentina, em diversos países, na África”, finaliza, dizendo-se preocupado e pessimista com o cenário mundial atual.