Esta reportagem faz parte da série especial de Opera Mundi com relatos de brasileiros que viveram o fim do governo Salvador Allende e início da ditadura Augusto Pinochet, episódio que completa 50 anos em 11 de setembro de 2023.
Neste quarto capítulo, contaremos a história de Silvio Tendler, cineasta e documentarista que chegou ao Chile por decisão pessoal.
O aeroporto de Lima, inaugurado 13 anos antes, nunca esteve tão cheio de chilenos quanto naquela estranha terça-feira em setembro de 1973. Uma grande parte deles havia feito conexão na capital peruana em seu trajeto de fuga em direção a Miami, nos Estados Unidos. Entre eles estava um brasileiro, um jovem estudante de cinema que também vinha do Chile, mas com um sentimento bem diferente.
Silvio Tendler chegou em Santiago no final de 1970, com a esperança de ver o nascimento e desenvolvimento de uma revolução democrática iniciada pelo projeto político do presidente Salvador Allende. Dois anos e 10 meses depois, ia embora com o coração partido. No Peru, ele apenas fazia uma escala, antes de voar a Paris.
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“Havia muitos chilenos de direita naquele aeroporto. Estavam indo para Miami. Eu iria para a França, mas percebi que aquela movimentação dos chilenos era bastante incomum. Quando o avião fez uma escala nas Bermudas para abastecer, eu vi um soldado, com aquela roupa de caçador inglês, e perguntei a ele o que havia acontecido no Chile. Ele me respondeu com apenas uma frase: ‘o presidente está morto’”, contou Silvio a Opera Mundi.
O tempo transformaria aquele jovem em um famoso diretor de cinema e documentarista, que ficaria conhecido no Brasil como o “cineasta dos sonhos interrompidos”. O Chile certamente foi um desses sonhos, um que ele viveu presencialmente, mas cujo final aconteceu quando ele já estava longe.
A viagem à França o livrou de um destino que vitimou muitos camaradas que ficaram no país andino, chilenos e brasileiros. “Tenho amigos que foram parar no Estádio Nacional, outros foram assassinados”, recorda.
Globetrotter da revolução
Apesar de ter suas preferências políticas, Silvio Tendler diz se considerar mais como um militante da cultura que da política. “Aos 14 anos eu comecei a participar do movimento cineclubista, depois do movimento estudantil. Nunca pertenci a uma organização armada. O único problema que tive na ditadura foi quando um amigo participou no sequestro de um avião, eu fui envolvido no processo, tive que dar depoimento, mas consegui me safar”, disse.
Em 1970, Silvio se encontrava em uma situação complexa, em um Brasil onde a conquista do tricampeonato mundial de futebol no México foi muito bem aproveitada pelo ditador Emílio Garrastazu Médici para aumentar sua popularidade e esconder os abusos e as políticas de concentração de renda – como o chamado “milagre econômico”, que beneficiou apenas as classes já privilegiadas. Ao mesmo tempo, ele sentia que as opções de militância oferecidas pela esquerda para resistir àquele regime não o acomodavam.
“Fiquei meio perdido, porque não tinha coragem de pegar em armas, sempre disse (a amigos) que não consigo segurar um revólver e apontar para outro ser humano, e também não queria ir pra contracultura. Os amigos que largaram o movimento armado foram para o mundo das drogas, muito ácido e tal. Nenhuma das duas coisas era a minha onda, nem luta armada nem gererê”, afirmou ele à reportagem.
Até que, em setembro de 1970, chegou a notícia de que o Chile havia eleito um presidente marxista. Salvador Allende era o primeiro socialista a chegar ao poder pela via democrática na América Latina. Silvio não titubeou ao se deparar com essa oportunidade.
“Desembarquei no Chile em 10 de novembro, seis dias depois da posse do Allende. Eu tinha 20 anos de idade e senti que se abriram as portas do paraíso. O Brasil era uma ditadura sanguinária e ali eu encontrei um povo com alegria, entusiasmo e fé no socialismo”, recorda.
O cineasta enfatiza o fato de sua mudança ter sido uma escolha pessoal: “eu nunca me defini como exilado. Depois do Chile, eu vivi na França, onde também me deparei com o rescaldo do movimento de maio de 1968. Conheci grandes cineastas, grandes artistas. Também era um universo libertário. Me considero mais como um ‘globetrotter da revolução’”.
Papai Noel da Unidade Popular
Tendler lembra do seu primeiro dia no Chile. Em sua chegada à “Pensão da Dona Adriana” – no bairro de Ñuñoa, perto da avenida Irarrázaval, uma das artérias principais de Santiago – encontrou um grupo de brasileiros refugiados e outras pessoas assistindo a televisão, que transmitia a notícia de que o governo de Allende havia decidido restabelecer as relações diplomáticas com Cuba.
“Era apenas o sexto dia de mandato. Os Estados Unidos haviam imposto um regime de isolamento a Cuba nos anos 60, obrigando toda a América Latina a virar as costas para Cuba, e o Chile foi o primeiro a romper com esse isolamento. Todos ali ficamos emocionados com essa notícia”, contou.
Dias depois, o cineasta conheceu pessoas ligadas à Federação de Estudantes do Chile, entidade similar à União Nacional dos Estudantes (UNE) no Brasil. Esses primeiros contatos permitiram a ele se aproximar de organizações que realizavam ações sociais apoiadas pelo governo de Allende. Em poucas semanas, ele já se via atuando em programas impulsionados pela Unidade Popular (UP), como era chamado o projeto político do líder socialista chileno.
“Eles me convidaram para ser o Papai Noel da Unidade Popular. Andei pelos hospitais e orfanatos de Santiago distribuindo presentes em nome da Unidade Popular e da Presidência da República”, rememorou.
Outro programa no qual Silvio participou ativamente foi o dos “balneários populares”. Tratava-se conjuntos habitacionais que o governo de Allende construiu próximo a algumas das melhores praias do país, outrora frequentadas apenas pela burguesia local. “O governo deu casas de veraneio a trabalhadores que, em alguns casos, nunca haviam tido férias. E também contratou folcloristas, professores, pessoas especializadas em cuidar de crianças, para que os casais pudessem ter seu momento de intimidade. Era um projeto muito bonito”, disse.
Esse projeto permitiu ao então estudante conhecer o cineasta Hugo Araya, com quem percorreu boa parte do território chileno filmando cenas do país que a Unidade Popular tentava construir. Seu chefe seria uma das vítimas do dia do golpe: foi assassinado pelos militares ainda no dia 11 de setembro de 1973.
Silvio Tendler
4 de Setembro de 73, comemoração da eleição de Allende, última manifestação popular antes do golpe militar
De 700 a 5 mil
Um certo dia, durante seus primeiros dias no Chile, Silvio foi a uma banca de jornais no bairro de Ñuñoa e o jornaleiro percebeu que ele era brasileiro. Também supôs que era uma pessoa de esquerda, já que a maioria dos pertencentes a essa comunidade em Santiago era progressista.
“Eu me surpreendi com a quantidade de publicações de esquerda que havia ali. O dono da banca notou minha reação. Eu tentei puxar conversa com ele, falando baixo, mas ele respondeu: ‘aqui você pode falar alto (sobre suas preferências políticas), aqui você tem liberdade’”, contou Tendler a Opera Mundi.
A coletividade brasileira no país andino, além de numerosa, se distinguia por uma inevitável maioria progressista, pois cresceu à medida em que os opositores da ditadura militar no Brasil precisavam escapar da perseguição e encontravam no processo allendista o perfeito refugio socialista e sul-americano.
Claramente, o Chile era a melhor alternativa para um brasileiro de esquerda buscar uma nova vida. Mas mesmo dentro da esquerda havia diferentes setores.
“Quando eu cheguei, em 1970, havia uns 700 brasileiros vivendo em Santiago. Eram da primeira leva, os chamados ‘reformistas’, a maioria exilados do governo Jango. A segunda leva veio mais ou menos junto comigo. Foi muito maior e trouxe mais gente ligada à luta armada. Quando o Allende sofreu o golpe havia mais de 5 mil pessoas na comunidade”.
Tendler fez amizades com brasileiros ligados às duas diferentes levas de exilados no Chile, embora se queixasse de um “certo preconceito” de alguns compatriotas pelo fato de que ele não pertencia a nenhuma organização política: “eles me consideravam hippie, porque eu tinha cabelo grande, mas eu era só um cara alegre e que não vivia em função de uma militância”.
Um dos pontos de encontro de Silvio Tendler com os brasileiros de Santiago era a livraria de Zé Maria Rabelo, uma das mais famosas de Santiago. Com a ajuda do livreiro, ele fez amizades com figuras que se destacariam anos depois, tanto brasileiros (como o advogado e político Plínio de Arruda Sampaio) quanto chilenos (como o escritor e cineasta Miguel Littin).
Quem traiu o socialismo?
Em meio a sua estadia no Chile, Silvio recebeu uma oportunidade de viajar para a França, em 1972. “Eu queria estudar cinema e Paris me proporcionou um ambiente fantástico. Conheci figuras importantes da época, como o Vassilis Vassilikos, (escritor grego, autor do romance Z), o Costa-Gavras (cineasta grego), vários documentaristas franceses importantes. Era um universo muito rico culturalmente”, recorda o cineasta.
A primeira passagem por terras francesas durou alguns meses. Em seu regresso ao Chile, no segundo semestre de 1973, ele se deparou com um cenário bem diferente do que ele havia deixado quando partiu.
Em junho daquele ano, quando o então jovem estudante brasileiro se deleitava com a cena artística parisiense, a utopia socialista de Allende enfrentava sua primeira tentativa de insurreição militar, que terminou fracassando. Silvio regressou a Santiago semanas depois e encontrou um país já tomado pelo clima de golpe.
“Em agosto, um grupo desses de extrema direita explodiu uma central elétrica. No dia seguinte, eu ouvi o porteiro de um prédio perguntando ‘quando será que vão cortar a água também?’. Aos poucos, fui percebendo que o país já era outro. Na primeira vez que cheguei ao Chile, vi um governo construindo a revolução. Na segunda, o que avançava era a contrarrevolução”, comenta.
O brasileiro também lembra de seu último dia no país andino, um 4 de setembro de 1973, celebrado com um ato político multitudinário em apoio ao presidente Salvador Allende, no aniversário de três anos de sua vitória eleitoral.
Aquela mobilização, porém, acabou servindo mais para revelar a divisão dentro da esquerda do que para mostrar a unidade que o setor precisava para enfrentar o golpismo.
“Havia dois grupos que eram os mais numerosos naquele ato. O pessoal do Partido Comunista, que defendia a ideia de buscar uma saída política para aquela crise, e o pessoal do MIR (sigla em espanhol do Movimento de Esquerda Revolucionária), que queria partir para o enfrentamento armado. Durante a manifestação, a turma do MIR começou a gritar que ‘o reformismo trai o socialismo’. Os militantes comunistas responderam dizendo que ‘o ultraesquerdismo trai o socialismo’”, relembra o documentarista.
No dia seguinte, Sílvio viajou ao Peru, escapando do que estava por vir, mas com o pensamento em uma conversa que teve com um amigo, na saída do ato em defesa de Allende. Ambos concordaram que o Chile estava à beira de um grande acontecimento, que poderia ser um golpe da direita e a instalação de uma ditadura, ou um contragolpe allendista para um triunfo e consolidação definitiva da Unidade Popular. O brasileiro perguntou ao camarada chileno o que ele achava mais provável. “Seja lá o que for, que ocorra logo, ninguém aguenta mais esta tensão”, foi a resposta.
Alavanca ao futuro
De volta a Paris, Silvio passou a colaborar com um comitê de solidariedade ao Chile criado na capital francesa, um dos muitos similares que foram abertos em todo o mundo.
“Para a minha geração, o processo vivido no Chile equivale ao que foi a Guerra Civil Espanhola nos anos 30. Foi um acontecimento fundamental. Por isso os comitês tiveram até apoiadores famosos. O François Mitterrand, que na época era candidato presidencial (seria presidente da França entre 1981 e 1995), foi um dos que participou, assim como o Alain Touraine (sociólogo e escritor francês), que inclusive era casado com uma chilena”, disse.
Além do envolvimento com o comitê, Silvio trabalhou como assistente de direção no documentário La Spirale, de Chris Marker. O filme, que estreou em 1975, retratou os eventos que ocorreram no Chile desde a eleição de Salvador Allende até o golpe militar.
Em 1976, após formar-se em história pela Universidade Paris VII, Silvio Tendler regressou ao Brasil. Em seu país natal, além de participar da luta pela redemocratização, ele construiu uma sólida carreira de cineasta e documentarista, realizando obras que justificariam seu apelido de “cineasta dos sonhos interrompidos”, entre as quais estão: Os Anos JK – Uma Trajetória Política (1980), Jango (1984), Marighella – Retrato Falado do Guerrilheiro (2001), Utopia e Barbárie (2009) e Tancredo, a Travessia (2011).
Também dirigiu o seriado Anos Rebeldes (1992), da Rede Globo, e os documentários da chamada Trilogia da Terra: O Veneno Está na Mesa (2011), O Veneno Está na Mesa II (2014) e Agricultura Tamanho Família (2014).
“Eu vivo de preservar a memória. Acho que a memória é a alavanca ao futuro. Não existe futuro sem memória. E atualmente temos muita gente querendo se apossar da memória e cobrar por coisas que são públicas. A Getty Images está vendendo fotos e filmes da época do nazismo que não foram produzidos por eles. Depois que caiu o mundo socialista, aquele material produzido pela Alemanha no passado passou a ser vendido a peso de ouro. Aqui no Brasil também é caríssimo usar uma imagem (do passado). É a destruição da memória, a apropriação indébita de um bem coletivo, e eu estou brigando contra isso fazendo filmes”, contou a Opera Mundi.
Silvio Tendler participará da caravana Viva Chile, que reunirá brasileiros que pretendem participar dos eventos em Santiago sobre os 50 anos do 11 de setembro, e terá como missão paralela a gravação de material para seu próximo documentário, que se chamará “Diálogos e Memórias de Exilados” e contará a história de brasileiros que viveram o exílio no Chile e na França.