Roberto Ventura, que morreu num acidente de automóvel antes de concluir a biografia de Euclides da Cunha, concedeu-me, em fevereiro de 2002, uma longa entrevista sobre o autor de Os Sertões. Foi o início de uma série de textos que fiz em 2002 sobre os cem anos de publicação do livro, lançado a 2 de dezembro de 1902.
O texto abaixo foi publicado no jornal O Estado de S.Paulo em 24 de fevereiro de 2002.
O ano de 2002 marca o centenário de uma das mais importantes obras da literatura brasileira. Em dezembro de 1902, logo no segundo dia do mês, chegava às livrarias Os Sertões, relato da campanha militar da jovem República brasileira contra o povoado de Canudos. O assunto, acreditava-se, parecia ter perdido a atualidade –mas o engenheiro militar Euclides da Cunha (1866-1909), enviado ao campo de batalha como repórter por O Estado de S. Paulo, soube “esquentá-lo”, transformando o episódio de Canudos num dos marcos da história do país.
Além de produzir reportagens e notícias, Euclides parte, em 1897, já com a ideia de escrever um livro sobre o confronto – diferentemente dos outros repórteres que marcaram a história do jornalismo brasileiro -, realizando a primeira cobertura “a quente” de uma guerra, graças à instalação de uma linha de telégrafo até o acampamento das forças do governo.
Quando Os Sertões é publicado, a repercussão é imediata. Duas edições se esgotam rapidamente, transformando o livro aparentemente difícil num grande sucesso. Um ano depois, seu autor já faz parte da Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Para Roberto Ventura, professor de teoria literária da Universidade de São Paulo, que deve lançar até o fim do ano uma biografia de Euclides, Os Sertões é uma obra singular. Ventura empresta uma definição de Ítalo Calvino para Ilíada e Odisséia e afirma que seu texto não pode nunca ser lido, mas apenas relido, tamanha é sua penetração no imaginário brasileiro.
Para Ventura, há uma grande afinidade entre os temas escolhidos por Euclides e sua vida pessoal. O escritor, marcado pela morte da mãe, aos 3 anos, e por uma vida sentimental atribulada, que tem o trágico desfecho em sua morte, teria buscado temas dramáticos e grandes oposições em seu trabalho.
A construção da obra-prima por Euclides começa já em Canudos e em Salvador, onde prepara os primeiros rascunhos. No interior paulista, em Descalvado, tem início, propriamente, a escritura do livro, que será concluído em São José do Rio Pardo. A versão final da obra é revista em Lorena, onde Euclides vistoriava obras públicas. É em Lorena, no dia 3 de dezembro, que Euclides recebe a crítica favorável de José Verissimo, que dá início à repercussão da obra.
Os Sertões é o primeiro dos grandes livros de interpretação história do País. Inaugura uma linhagem de grandes obras, entre as quais se destacam Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda.
Para comemorar o centenário dessa obra fundadora, o Estado inicia hoje, no caderno Cultura, a publicação de uma série de reportagens e artigos sobre Os Sertões e seu autor. Os textos devem ser publicados até o fim do ano, sem periodicidade definida.
Leia abaixo entrevista com Roberto Ventura, que, depois de dez anos de pesquisa, deve lançar ainda neste ano uma biografia do escritor.
Por que o sr., depois de escrever Estilo Tropical, decidiu biografar Euclides da Cunha?
Roberto Ventura – Achei que Euclides era um grande assunto para uma biografia por dois motivos: de um lado, pela grandeza de Os Sertões e de seus livros de ensaios Contrastes e Confrontos (1907) e À Margem da História (1909); por outro, ele teve uma vida fascinante, marcada pelos acontecimentos políticos dos últimos anos da monarquia e pelo começo da República. Através de sua atuação como jornalista, Euclides, afastado do Exército em 1888, participou ativamente das transformações e foi um dos primeiros críticos do novo regime.
Como Euclides se aproximou do jornalismo?
Ventura – Em 1888, Euclides, aos 22 anos, participou de um protesto contra a política de promoções do Exército. Rapidamente, se espalha a versão de que o ato fazia parte de uma conspiração dos cadetes contra o Império e ele é afastado. O protesto, contudo, não contou com o apoio dos oficiais e dos cafeicultores paulistas, como ocorreria em 1889, levando, então, ao fim do regime. Faltou essa costura política. Euclides, então, é convidado, por Julio Mesquita, a escrever para A Província de S. Paulo, em defesa das posições republicanas assumidas pelo jornal. Após a proclamação, Euclides volta ao Exército e vai ter sua vida continuamente marcada pela política. Participa do golpe que conduziu Floriano ao poder e, como engenheiro militar, constrói trincheiras para as tropas do Exército durante a Revolta da Armada (1893), ao mesmo tempo em que começa a se desiludir com a República. Seu sogro, o general Solón Ribeiro, é preso por Floriano. O senador cearense João Cordeiro propõe, então, no jornal O Tempo, a execução sumária de responsáveis por atentados. Euclides protesta, na Gazeta de Notícias, contra a barbaridade, indispondo-se com o regime.
Quando Euclides da Cunha parte para Canudos, a serviço de O Estado de S.Paulo, ele já havia deixado, novamente, o Exército.
Ventura – Sim. Ele parte para Canudos como capitão reformado. A campanha de Canudos tem uma característica especial: é a primeira guerra da história do Brasil em que a cobertura jornalística é feita de forma quase instantânea, graças à instalação de uma linha de telégrafo até Monte Santo, onde ficam estacionadas as tropas do Exército. A grande diferença de Euclides em relação aos outros repórteres que cobriram a campanha é que ele parte já com a ideia de escrever um livro sobre a guerra, e não apenas notícias. Algumas das ideias básicas do livro já estão esboçadas nos artigos que publicou antes da viagem, embora neles ainda aceite um pouco a tese de que Canudos fazia parte de uma conspiração monarquista. Em 1905, Euclides parte para a expedição à nascente do rio Purus, trabalhando para o Itamaraty na demarcação das fronteiras que hoje o Brasil conhece. Dessa expedição, nasce o segundo grande conjunto de obras de Euclides, os escritos sobre a Amazônia. A vida dele, portanto, está completamente ligada à passagem da monarquia à República.
Apesar de ligado aos novos tempos, Euclides parecia ter algumas dificuldades para se adaptar.
Ventura – Na verdade, nunca se adaptou. Nem ao casamento, nem às atividades profissionais. Além do drama conjugal, ele não se adaptou ao Exército e a sua hierarquia, não se adaptou à atividade de engenheiro e seus deslocamentos constantes, não se adaptou ao fato de não ser nunca efetivado no Itamaraty. O que, acredito, levou-o a buscar, para sua obra, assuntos dramáticos. Euclides busca sempre as oposições: sertão e litoral, civilização e barbárie, brasileiros e peruanos. Na verdade, ele tinha ojeriza a qualquer atividade que o afastasse do ofício de escritor e cientista. Euclides tinha alguma inspiração para se tornar professor. Tentou, várias vezes, ingressar na Escola Politécnica. Provavelmente não o conseguiu por causa das críticas que fizera ao engenheiro Paula Souza durante a organização da escola. Só no fim da vida, é aceito como professor de lógica do Colégio Pedro II.
A vida de Euclides acabou virando uma novela, por causa de sua morte trágica?
Ventura – Virou um folhetim, um folhetim sangrento. Há toda uma afinidade entre a vida e a obra. A vida acaba imitando a própria obra. As circunstâncias da morte se apresentam quase como um paralelo irônico ao que ele escreveu. Os Sertões é uma denúncia de um grande crime, de uma grande violência, sobretudo da degola vergonhosa de prisioneiros que haviam se rendido com a promessa da garantia de vida. Euclides mostra como essa chacina é movida por sentimentos de vingança, por códigos de reparação ancestrais. De certo modo, a vingança do Exército contra os ataques dos canudenses a expedições anteriores é semelhante à violência de Euclides, ao atacar Dilermando de Assis, o amante de sua esposa, Anna. Euclides, em Os Sertões, reconta a história do Conselheiro defendendo que seu caráter se formou a partir de uma série de violências, mostrando que a família Maciel é desgraçada por causa de vendetas no Ceará. Conselheiro, antes de se estabelecer em Canudos, era, como Euclides, um construtor de igrejas, capelas e cemitérios. E o livro atribui a grande mudança na vida do Conselheiro à traição da mulher. As suas vidas, assim, se aproximam incrivelmente.
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Euclides parte, em 1897, já com a ideia de escrever um livro sobre o confronto , realizando a primeira cobertura "a quente" de uma guerra
'Euclides dormiu obscuro e acordou célebre'
Para o biógrafo Roberto Ventura, “é muito difícil classificar o escritor Euclides da Cunha”. Isso porque, se emprega uma linguagem naturalista e cientificista ao compor Os Sertões, ele se revela profundamente marcado pela literatura romântica, especialmente a produzida por Victor Hugo e Castro Alves.
Ventura afirma que sua biografia deve combinar a narrativa da vida com a análise da obra. “Não será apenas factual”, diz. O livro, chamado Euclides, deve ser lançado no segundo semestre deste ano pela Companhia das Letras.
Leia abaixo a continuação da entrevista.
Quando, exatamente, começa a relação amorosa entre Anna e Dilermando?
Ventura – Em 1905, quando Euclides está na Amazônia. Ele provavelmente sabe da relação quando volta ao Rio, em 1906, e ela está grávida. Anna tem o filho de Dilermando, mas Euclides assume a paternidade. Mauro morre ainda bebê, em circunstâncias suspeitas. Anna mantém a relação escondida de Euclides e, casada com ele, tem outro filho de Dilermando, Luís. Euclides parece ignorar, ou no máximo desconfiar. Nunca trata da questão em sua correspondência. É provável que ele só veio a saber que o relacionamento se mantinha pouco antes da troca de tiros com Dilermando.
A minissérie Desejo, da Globo, criou uma imagem idealizada dos personagens, ligando Anna de Assis, por exemplo, a Vera Fischer.
Ventura – Anna, certamente, não se parecia com Vera. Na época, as pessoas se espantavam pelo fato de ela ter atraído Dilermando. Que, ao contrário de Euclides, tinha porte atlético, era um desportista, praticava esgrima. A saúde de Euclides era muito delicada, abalada pela tuberculose – que contraiu, provavelmente, da mãe. Euclides ficou órfão aos 3 anos, o que gerou muita instabilidade em sua vida. Ele morou na casa de diversos parentes, estudou em muitos colégios. Mais uma coincidência como Conselheiro: ele também era órfão. Outra proximidade é que ambos orientavam sua atuação pela fé: Conselheiro, na religião; Euclides, na ciência.
Como foi a recepção de Os Sertões?
Ventura – No discurso de recepção a Euclides na Academia Brasileira de Letras, Sílvio Romero disse algo que expressa bem o que aconteceu: “Euclides dormiu obscuro e acordou célebre.” O livro foi distribuído nas livrarias em 2 de dezembro de 1902. No dia 3 de dezembro, o crítico José Verissimo publicou, no Correio da Manhã, um grande elogio à obra, como literatura e como ciência, mas fazendo alguns reparos quanto ao emprego de termos científicos em excesso. Euclides responderá em carta, dizendo que o escritor do futuro será, necessariamente, um polígrafo. São feitas três edições sucessivas do livro. No ano seguinte ele é eleito para a ABL e ingressa, também, no Instituto Histórico e Geográfico do Brasil. O que é uma repercussão fantástica para um livro – que, primeiro, é longo; segundo, foi escrito com uma linguagem pouco acessível; e, terceiro, tem uma construção pouco convencional, com a ação vindo depois de descrições científicas.
Em 1902, qual era a importância da Guerra de Canudos?
Ventura – Quando o livro é publicado pela Laemmert, no Rio, a guerra perdera a atualidade. Euclides arca com metade dos custos da edição. Mas Euclides consegue “esquentar” a discussão, afirmando, numa nota preliminar, que o livro era apenas uma variante geral do tema que o sugeriu, que é o do “esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes”. Euclides, assim, coloca a campanha de Canudos dentro do discurso racista que marcava a ciência da época. Inaugura, desse modo, o gênero das grandes interpretações do Brasil, a que se filiariam nomes como Manuel Bonfim, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque.
O sr. afirmou, certa vez, que Euclides procurava ser um herói romântico.
Ventura – É muito difícil classificar Euclides como escritor. Ele mistura vários gêneros. E, se de um lado, ele segue princípios das ciências naturalistas, de outro forma sua sensibilidade estética a partir da literatura romântica: Victor Hugo, Castro Alves, Fagundes Varela – que foram, todos eles, poetas engajados em causas libertárias. Vem deles a linguagem hiperbólica utilizada por Euclides, que também recorre à literatura clássica para compor Os Sertões. De certa forma, Euclides dá roupagem científica à exaltação romântica da natureza. As atitudes intempestivas de Euclides podem ser vistas também como essa tentativa de encarnar o herói romântico, do indivíduo capaz de enfrentar a sociedade. Quando Euclides escreve nos jornais sobre temas políticos, a atitude de heroísmo o persegue. A expedição ao Acre mostra essa fascinação pelo risco. Ele, que já vivia com a tuberculose, é contaminado pela malária, sem contar os riscos de ataques de índios. Curiosamente, ele também era perseguido por visões de uma mulher vestida de branco. A grande coincidência, no caso, é que, no dia da sua morte, Anna estava de branco. Sabemos disso porque, no inquérito, consta que, procurada pelo filho na casa de Dilermando, ela decide não voltar para não sujar a roupa.
Há muitos mitos em torno da figura de Euclides?
Ventura -O grande mito que se formou foi a exaltação heroica do próprio escritor, que costuma ser festejado como alguém que perseguia altos ideais políticos e que se sacrificou pela República. Existe ainda um mito quase puritano, o da ascese sexual, de um Euclides preocupado quase que exclusivamente com a obra e os destinos do país. Esse culto, às vezes, se reveste de características misóginas, e Anna acaba sendo vista como a mulher que não é capaz de compreender a dimensão do escritor. Não pretendo, na biografia, fazer julgamentos morais sobre a vida conjugal do casal. Acredito apenas que circunstâncias infelizes levaram a um fim sangrento – que acabou colaborando para que ele passasse da história para o mito. Polícia e imprensa passam a revirar todos os detalhes escabrosos da relação, Anna perde a guarda dos filhos, toda uma tragédia familiar se desencadeia. Naquele momento, Euclides era o mais conhecido escritor brasileiro.
Esse escândalo teve alguma influência na avaliação da obra?
Ventura – Não, não acredito. O fato é que Os Sertões é mais conhecido do que propriamente lido. Italo Calvino, ao escrever sobre Homero, afirma que há certos livros que não podem ser lidos, apenas relidos, porque já fazem parte da cultura literária mesmo de quem não lê. O livro acabou fazendo com que Canudos passasse a integrar o imaginário brasileiro. Nenhum dos outros livros sobre a guerra, entre os quais se destaca O Rei dos Jagunços, de Manuel Benício, tem impacto semelhante na cultura brasileira. Darcy Ribeiro dizia que os dois únicos grandes livros do país eram Os Sertões e Casa-Grande & Senzala. Glauber pega “o sertão vai virar praia” de Euclides e, em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, diz que “o sertão vai virar mar”. Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, e A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, são apenas alguns dos livros que devem muitíssimo a Os Sertões.